segunda-feira, 31 de março de 2014

Quem não aceitará como dádiva celestial o transitório esforço de uma ascensão de montanha? (4) Ramalho Ortigão

O pó das estradas e o suor da marcha constituem o mais módico preço por que se pode pagar a delícia do banho, o jubiloso prazer da pele tonificada pela espuma do sabão e pelos jorros da água fria.
Quem não aceitará como dádiva celestial o transitório esforço de uma ascensão de montanha, tendo, uma vez na vida, gozado a satisfação inefável de ir dormir, ao cabo de um dia de Verão, a 1500 metros de altitude, a uma temperatura de 2 graus centígrados, debaixo da tenda de campanha, numa fofa cama de fetos, envolto na serenidade do infinito silêncio, com uma clavina debaixo do travesseiro e um perdigueiro aos pés, ao clarão perfumado e extático da grande fogueira de urze e de azinho, como nos últimos planaltos do Gerês?
A perspectiva do desconforto nas hospedarias basta para fazer desmaiar de pavor o habitante da nossa Baixa, a quem fizeram crer que todos os percevejos da província estão por essas camas à espera dele, para se emborracharem uma vez na vida com sangue da capital, o qual, pelo que é de escanfrado e de aquoso, deve ser precisamente, para os percevejos que bebem disso, a mais fraudulenta e desacreditada zurrapa de todo o reino.

Ramalho Ortigão, "Carta à Academia de Estudos Livres", datada de 6 de Agosto de 1899. publicada em Costumes e Perfis. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944, p. 278-279.

domingo, 30 de março de 2014

Hão-de dizer-lhes que Portugal não é terra para viagens. (3) Ramalho Ortigão

Hão-de dizer-lhes, para os desalentar do seu nobre e patriótico empreendimento, que Portugal não é terra para viagens; que são escabrosos os caminhos, escalvados os montes, poeirentas as estradas, inóspitas as estalagens. Não façam caso. Deixem em sossego, no seu veraneio de sorvetes mornos e de cerveja choca, esse opiniáticos sportmen do automobilismo, insípidos sedentários lisboetas, de articulações perras, de estômago sujo e de língua grossa, aparafusados pelas pesadas cadeiras eles mesmos às cadeiras da Avenida, às de S. Pedro de Alcântara e às dos botequins do Rossio.
Calcem os meus amigos os seus sapatos ferrados, vistam a blusa de linho, afivelem a mochila, e partam alegre e confiadamente em terceira classe, para ir à caça, para subir uma serra, para coligir cantigas ou coleópteros, para fazer um herbário ou um álbum de instantâneos, ou simplesmente para armar aos pássaros, para ouvir correr a água, ramalhar os castanheiros, cantar as toutinegras. Seja com que pretexto for, de arte, de arqueologia, de geologia, de botânica, de poesia, de simples recreio, o contacto da natureza é sempre purificador e salutar. E a convivência dos homens simples, especializados no mister, é incomparavelmente mais interessante e mais instrutiva que a dos enciclopedistas, ainda os mais conspícuos, das nossas classes dirigentes.

Ramalho Ortigão, "Carta à Academia de Estudos Livres", datada de 6 de Agosto de 1899. publicada em Costumes e Perfis. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944, p. 277-278.

sábado, 29 de março de 2014

Essas viagens são indispensáveis. (2) Ramalho Ortigão

Essas viagens são indispensáveis, no meio da lamentável desmoralização em que nos dissolvemos, para nos ensinaram a conhecer e a amar a Pátria pelo que nela é imortal, incorruptível e sagrado: pelo doce aspecto dos seus montes, dos seus vales, dos seus rios; pelo sorriso, melancólico mas contente, dos vinhedos, dos olivais, dos soutos, das hortas e dos pomares; pela tradição vívida nos monumentos arquitectónicos, nas romarias, nos contos e nas cantigas populares, nas indústrias caseiras, mas alfaias agrícolas, nas ferramentas dos ofícios rurais, na configuração dos lares; pela dicção, enfim, e pelas formas da nossa própria língua, que, por toda essa província, nos preciosos recantos em que não há livros nem periódicos, e onde o povo ainda não aprendeu a ler, se conserva áspera, nitente e tilintante como um belo dobrão de ouro, a que o manuseamento da erudição e a sujidade do giro literário não comeram a serrilha nem desgastaram a coroa e a efígie, convertendo-a na chapa safada e sórdida da nossa fala de parlamentares e de jornalistas.

Ramalho Ortigão, "Carta à Academia de Estudos Livres", datada de 6 de Agosto de 1899. publicada em Costumes e Perfis. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944, p. 276-277.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Ninguém terá calcado mais terra portuguesa. (1) Ramalho Ortigão

Tenho, sem me querer gabar, a sincera convicção de que, a não serem alguns velhos viajantes de comércio, ou algum almocreve palentológico, anterior ao dilúvio dos caminhos de ferro, ninguém terá calcado mais terra portuguesa do que este seu criado. Ninguém, sobretudo, terá nela viajado com mais empenho, com mais curiosidade, com mais desinteresse, com mais amor. Bem sei que há quem me tenha por estrangeiro e não me admira, porque nunca, nem nas lareiras a que me tenho sentado pelas quebradas do Marvão, da Serra da Estrela, do Gerês ou de Monchique, nem nas feiras francas a que tenho ido, a Viseu, a Vila Real, a Loulé, a Évora, a Viana, a Penafiel, e a tantas outras, não encontrei nunca nenhum dos sujeitos que fazem ou desfazem a reputação dos outros no Rossio, no Chiado ou no Arco do Bandeira.
Daí podem ajuizar os excursionistas da Academia dos Estudos Livres se me interessará ou não o programa das viagens que eles projectam organizar e de que me acabam de dar notícia!

Ramalho Ortigão, "Carta à Academia de Estudos Livres", datada de 6 de Agosto de 1899. publicada em Costumes e Perfis. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944, p. 275-276.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Faz ou desfaz. Nicolas Bouvier

Uma viagem dispensa justificações. Depressa provará que se basta a si própria. Tencionamos fazer uma viagem, mas será a viagem que nos faz, ou desfaz.

Nicolas Bouvier, L' Usage du Monde. Paris, Éditions Payot et Rivages, 2001 [1963], p. 12.

quarta-feira, 26 de março de 2014

A caminar por un camino. Manuel Padorno

Camino de mi ventana

Yo me eché a caminar por un camino
Que llevaba a la fábrica de luz.
Un camino, además, que terminaba
Delante de mi casa, justamente
Al abrir la ventana que da al mar.
Yo me fui convirtiendo, sin pensarlo.
En un obrero más, de los que abría
Las más grandes compuertas invisibles,
Celestes transparencias, y engrasaba
Los émbolos más altos, las poleas
Que elaboraban la mañana atlántica.
Después de mucho tiempo, tantos años
De aprender el oficio, convertido
En un obrero ya especializado.
Me fue confiado dar la luz del día.
Como un profesional, yo me dedico
A cumplir la faena encomendada
Apenas conocida por mi barrio.

Yo me eché a caminar por un camino
Que termina delante mi ventana.
Donde pulso la grande maquinaria.

Manuel Padorno (1933-2002)

www.manuelpadorno.es.

terça-feira, 25 de março de 2014

Posso ir e viver ou ficar e morrer. William Shakespeare

Julieta
Você já tem que ir? O dia ainda demora. Não foi a cotovia, foi o rouxinol que perfurou o seu ouvido temeroso. Ele costuma cantar na romãzeira: foi ele que cantou, foi sim, amor. 
Romeu
É a cotovia que anuncia o dia, não é o rouxinol. Estrias invejosas bordejam as nuvens do nascente. Foram-se as tochas da noite; o dia alegre já espanta a neblina do alto da colina. Posso ir e viver – ou ficar e morrer.
Julieta
Aquela luz ainda não é o aviso. Acho que é o sol que manda um meteoro para clarear seus passos para Mântua. Fique um pouquinho mais: partir não é preciso.

William Shakespeare, Romeu e Julieta (Ato 3, Cena 5)

segunda-feira, 24 de março de 2014

O inventor do turismo. Marc Boyer

J.J. Rousseau é habitualmente apresentado como o inventor do turismo. Larousse que foi o primeiro dicionário a consagrar um longo artigo à palavra turista qualificava Rousseau de “primeiro turista”. “No tempo das diligências e das barcaças fluviais, o turista não existia; só havia viajantes... Apesar da ausência e meios de comunicações fáceis, o século XVIII viu J. J. Rousseau dar o primeiro exemplo aos turistas, com os seus longos passeios pedestres na Suíça e na Itália, com o saco às costas e o bastão na mão, comendo pão escuro, leite e cerejas, em verdadeira comunhão com a natureza”. Rousseau, de facto, peregrinava a pé. 

Marc Boyer, Histoire Générale du Tourisme, du XVIe au XXe siècle. Paris, L´Harmattan, 2005. p. 77.

domingo, 23 de março de 2014

Où que me porte mon voyage, la Grèce me blèsse.Georges Séféris/Melina Mercouri

Où que me porte mon voyage, la Grèce me blesse
A Pilion, parmi les oliviers,
la tunique du centaure
Glissant parmi les feuilles
a entouré mon corps
Et la mer me suivait pendant que je marchais
Où que me porte mon voyage, la Grèce me blesse

A Santorin en frôlant
les îles englouties
En écoutant jouer une flû te parmi les pierres ponces
Ma main fut clouée à la crête d'une vague
Par une flêche subittement jaillie
Des confins d'une jeunesse disparue
Où que me porte mon voyage, la Grèce me blesse

A Mycènes,
j'ai soulevé les grandes pierres
et les trésors des Atrides
J'ai dormi à leur côtés à l'hôtel de "La Belle Hélène"
Ils ne disparurent qu'à l'aube lorsque chanta Cassandre
Un coq suspendu à sa gorge noire
Où que me porte mon voyage, la Grèce me blesse

A Spetsai, à Poros et à Myconos
les Barcaroles m'ont soulevé le coeur
Où que me porte mon voyage, la Grèce me blesse

Que veulent donc ceux qui se croient à Athene
ou au Pyrée
l'un vient de Salamine
et demande à l'autre
si il "ne viendrait pas de la place Omonia"
"non, je viens de la place Syndagma"
repond il satisfait
"j'ai rencontré Yannis
et il m'a payé une glace"
Pendant ce temps la Grèce voyage
et nous n'en savons rien
nous ne savons pas que, tous, nous sommes marins sans emploi
et nous ne savons pas combien le port est amer
quand tous les bateaux sont partis
Où que me porte mon voyage, la Grèce me blesse

Drôles de gens
ils se croient en Attique
et ne sont nulle part
ils achètent des dragées pour ce marier
et il se font photograhpier
l'homme que j'ai vu aujourd'hui
assis devant un fond de pigeons et de fleurs
laissait la main du vieux photographe,
lui lisser les rides creusées
de son visage
par les oiseaux du ciel
Où que me porte mon voyage, la Grèce me blesse

Pendant ce temps, la Grèce voyage,
voyage toujours
Et si la mer Egée se fleurit de cadavres
ce sont les corps de ceux qui voulurent rattrapper à la nage
le grand navire
Où que me porte mon voyage, la Grèce me blesse

Les Pirée s'obscurcit
les bateaux sifflent, ils sifflent sans arrêt
mais sur le quai nul cabestan ne bouge
Nulle chaine mouillée n'a scintillé dans l'ultime éclat
du soleil qui décline
Où que me porte mon voyage, la Grèce me blesse

Rideaux de montagnes, archipels,
granites dénudés
le bateau qui s'avance s'apelle
Agonie ....

Georges Séféris



sábado, 22 de março de 2014

Há algum local melhor para trabalhar que a cidade? Marcel Proust

Porque é que viaja tanto [Olivian]? Os bancos da viatura conduzem-nos com muito mais lentidão onde o seu sonho o levaria bem depressa. Para chegar perto do mar só precisa de fechar os olhos. Deixe aqueles que não possuem senão os olhos do corpo deslocarem-se com o seu séquito e instalarem-se em Pouzzoles ou Nápoles. Pretende, diz-nos,  terminar lá um livro? Há algum local melhor para trabalhar que a cidade? Homem de imaginação, não pode obter prazer senão pelo que espera ou pelo que lamenta, ou seja, no futuro ou no passado.
É por isso, Olivian, que está descontente. [...] É bem infeliz. Ainda não é um homem e já é um homem de letras.
Marcel Proust

Voyager avec Marcel Proust. Mille et un voyages. Textes choisis et présentés par Anne Borrel. Paris. Editions Quinzaine Littéraire, 1994. p. 309.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Ó peregrinos que 'pensoso' andais. Dante Alighieri

... que uns quantos peregrinos passavam por uma via que está quase no meio da cidade onde nasceu e viveu e morreu a gentilíssima dama. Os quais peregrinos andavam, segundo me pareceu, muito pensativos; pelo que eu, pensando neles, disse para mim mesmo: “Estes peregrinos parecem-me de longínqua parte, e também não creio que tivessem ouvido falar ainda desta dama, e disso não sabiam nada; antes os seus pensamentos são sobre outras coisas que não estas aqui, que pensam talvez nos seus amigos distantes, os quais nós não conhecemos”. Depois dizia para mim mesmo: “Eu sei que, se eles fosse de terras próximas, pareceriam perturbados nalgum aspecto passando pelo meio da dolorosa cidade.” Depois dizia para mim mesmo que eles saíssem da cidade, pois que eu diria palavras que fariam chorar quem quer que as escutasse.” Pelo que, passados estes alem da minha vista, propus-me fazer um soneto no qual eu manifestasse aquilo que eu tinha dito para mim mesmo; e para que mais parecesse piedoso, propus-me dizê-lo como se eu lhes tivesse falado; e disse esse soneto, o qual começa: Ó peregrinos que pensoso’ andais. E disse “peregrinos” segundo a larga significação do vocábulo; porque peregrinos se podem entender de dois modos, num lato e num restrito: no lato, enquanto é peregrino todo aquele que está fora da sua pátria, em modo restrito não se entende peregrino senão quem vai para a casa de São Tiago ou regressa. E por isso é de saber que de três modos se chamam propriamente as gentes que vão a serviço do Altíssimo: chamam-se palmeirins enquanto vão ultramar, lá onde muitas vezes trazem a palma; chamam-se peregrinos enquanto vão à casa da Galiza, pois que a sepultura de São Tiago estava mais distante da sua pátria que a de qualquer outro apóstolo; chamam-se romeiros enquanto vão a Roma, lá onde estes a quem chamo peregrinos iam.
Este soneto não divido, pois que assaz o manifesta o seu relato.

Ó peregrinos que pensoso’ andais,
talvez de coisa que não é presente,
vós vindes de um tão remota gente,
tal como à vista vós nos demonstrais,
que não plangeis enquanto vós passais
p’lo meio da cidade assim dolente,
como aquelas pessoas cuja mente
não entendesse gravidades tais?
Se vós ficásseis por querê-lo ouvir,
por certo o cor do suspirar me diz
que já não saireis, lagrimando.
Ela perdeu sua Beatriz;
dela as palavras que um pode exprimir
Têm virtude de outrem pôr chorando.

Dante Alighieri, Vida Nova. Tradução de Jorge Vaz de Carvalho. Lisboa, Relógio de Água, 2010. P. 121-123.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Como é que o cônsul aprendeu tão excelente inglês? Mollie Bidwell

Pittsburg
29 Maio, 1873

Meu querido amigo
Recebi a sua bem-vinda carta esta manhã e quando reconheci a letra tremi e empalideci pois nunca esperei voltar a saber de si.
Estive à espera tão ansiosamente por notícias suas e cheguei à conclusão que voltara para a Europa e de que nunca mais o veria. Querido, a sua carta é um raio de felicidade na minha vida; que feliz estou esta noite por saber que está nos Estados Unidos e não nessa desagradável Havana. Imaginei-o com febres, com tudo de pior. Na verdade estive sempre doente desde que deixei Havana e não pode agora dizer que tenho bom ar porque estou magra e com péssimo aspecto.
Sobre a sua vinda a Pittsburgh: claro que virá e depressa também, querido, porque até lá sentir-me-ei quase louca. Quando vier terá que tomar um coche porque os transportes públicos estão interrompidos pelo arranjo das vias mas terá de mencionar ao condutor os Bidwells, em Oakland, ou irá certamente parar aos meus tios.
Que feliz me sentirei por vê-lo uma destas tardes pelas 2 horas, meu querido, não posso esperar e seria melhor não vir demasiado cedo pois isso não agradaria à Mamã e ao Papá, mas tenho que lhe contar o que eles disseram da sua carta. Depois de a ter lido, levei-a ao quarto do Papá e disse-lhe que tinha uma carta muito simpática de um amigo e que gostaria que ele a lesse à Mamã. Leu-a e disseram ambos que era uma carta estupenda. Mollie, como é que o cônsul aprendeu tão excelente inglês? E como é que foi querido? Deve ter feito progressos desde que chegou a Nova Iorque porque não fazia ideia que pudesse escrever um inglês tão bom: esteve este Inverno numa boa escola.
Quando chegar não diga a ninguém que eu escrevi esta carta, porque embora o Papá não o tivesse proibido, sei que ele preferia que eu não a tivesse escrito.
Agrada-me saber que está contente com o nosso país, custa-me a crer que gosta dele como diz, mas pode dizer-me tudo o que pensa dos bárbaros quando nos encontrarmos.
Espero que desculpe esta escrita já que escrevi à pressa, por ser tarde.
Meu querido, devo dizer-lhe adeus até o ver, o que espero não demore muito.
Penso que agora me sentirei melhor, porque me afligi continuamente consigo. Graças a Deus está completamente a salvo desse mar medonho e estará dentro em pouco comigo. Que felicidade!
Sempre sua
M.

Cartas de Amor de Anna Conover e Mollie Bidwell para José Maria Eça de Queiroz, cônsul de Portugal em Havana (1873-1874). Lisboa, Assírio & Alvim, 1998. p. 80-81.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Para navegar no mar do passado remoto. José Saramago

Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo. Esse filme de Lisboa, comprimindo o tempo e expandindo o espaço, seria a memória perfeita da cidade.O que sabemos dos lugares é coincidirmos com eles durante um certo tempo no espaço que são. O lugar estava ali, a pessoa apareceu, depois a pessoa partiu, o lugar continuou, o lugar tinha feito a pessoa, a pessoa havia transformado o lugar.

José Saramago, Outros Cadernos de Saramago (http://caderno.josesaramago.org). post de 17 de Setembro de 2008.

terça-feira, 18 de março de 2014

Sei lá! José Gomes Ferreira

De vez em quando esbarrava nas árvores e candeeiros públicos.
Por este simples motivo: o de me esquecer de olhar para o caminho, afundado em meditações desta espécie:
Personalidade? Que significa essa história de ter, ou de não ter, personalidade? Existe alguma fórmula de elixir secreto ou qualquer aparelho de delicadeza pesquisadora especial que nos permita determinar imediatamente, sem receio de nos enganarmos, se alguém possui esse dom misterioso? Um certo azul nos olhos? O queixo levantado? A maneira majestosa de subir para o autocarro? Ou de entrar nos apertões do Metro, afastando com os dedos, em piparote, a muralha de pedras vivas que impede a passagem para os corredores vazios? Certos raios magnéticos com que as mulheres nos fulminam, obrigando a agachar os homens até ao destino de capachos? As jubas de leões invisíveis de certos calvos hieráticos? O silêncio sistemático do Pacheco de Eça? As palavras ocamente acrobatas de certos frequentadores de salas e bares?
Sei lá!

José Gomes Ferreira, Calçada do Sol. Diário Desgrenhado de um Homem Qualquer Nascido no Princípio do Século XX. Lisboa, Livraria Morais, 1983. p. 71

segunda-feira, 17 de março de 2014

Saberei, talvez, no fim desta viagem. Ruy Duarte de Carvalho

Saberei ainda assim que a Ipiranga cruza a avenida São João onde sangue de um crime, segundo Vansolini, domador de serpentes no Butantã, pode sempre estar escorrendo de algum bar onde haja malandro jogando bilhar, mas que sei eu de resistências brasileiras a ditaduras para mim alheias? Saberei talvez alguma coisa de governos que em África podem perpetuar-se porque aproveitam situações que não dão alternativa e sabem adaptar-se aos discursos e à prática que mais convêm aos tempos políticos que se vão sucedendo sem que isso os leve a alterar o regime que apurarem para o exercício do domínio interno e a prosperidade de quem tomou, já faz muito tempo, conta do poder. Mas que sei eu do São Paulo e do Brasil de agora e daquele que entretanto decorreu enquanto as nossas guerras nos mantinham entretidos? Saberei, talvez, no fim desta viagem. E de qualquer maneira a viagem que tenho pela frente, vou fazê-la de facto porque ao longo da vida sempre fui mantendo o Brasil como paixão, ancorado numa condição periférica de angolano excêntrico em que apesar de tudo consegui manter-me coexistindo sempre com meia dúzia de referências, nomes de autores, personagens brasileiras, e painéis inteiros de paisagens que confundi com as minhas. Penso isto tudo, já, olhando para fora, apontando o olhar à direcção nordeste. Não ligo para o céu baixo de chumbo derramado e frio, mentor de neblinas, garroas macias, cálidas quase e lentas que enquanto aqui estiver não vão nunca deixar de me fazer lembrar que habito um lugar que é como o café quer, nem para as torres de betão que assim de tais alturas se me impõem, erectas e limpas, sobre a ondulação assente dos telhados baixos de Pinheiros e da Vila Madalena, e eis um recorte que me rende a São Paulo.

Ruy Duarte de Carvalho, Desmedida. Crónicas do Brasil. Lisboa, Edições Cotovia, 2006. p. 56-57

domingo, 16 de março de 2014

sábado, 15 de março de 2014

Epitáfio de Vicente Huidobro


Huidobro, poeta chileno que nasceu em 1893 e morreu, com uma sequela de um ferimento de guerra, em 1948, está sepultado no cemitério de Cartagena, onde se pode ler o seguinte epitáfio: 
Aquí yace el poeta Vicente Huidobro. 
Abrid la tumba. 
Al fondo de esta tumba se ve el mar.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Passagem do tempo

Passagem do tempo, nas Caldas

Este é um livro onde se sobrepõem distintas narrativas, feitas de imagens e de palavras, tendo a cidade por objecto. Uma cidade concreta, com as suas praças e ruas e esquinas, com os olhares que suscita e os sentimentos que desperta, Caldas da Rainha dos últimos cem anos, aproximadamente; mas onde podemos ler os caminhos, as dúvidas e hesitações, as dificuldades por que passaram outras cidades da mesma condição.
O ponto de partida da construção do livro é o efeito da passagem do tempo na cidade. Uma fotografia antiga de um determinado lugar urbano é confrontada com uma outra fotografia, do mesmo lugar e perspectiva, como se o mesmo fotógrafo, entretanto regressado, pretendesse tão só registar a mudança externa, apesar das décadas entretanto decorridas. De facto, sabemos que há um segundo fotógrafo, que aceita as opções do primeiro, o ângulo decidido pelo primeiro, o enquadramento elaborado pelo primeiro. Este mimetismo é aparente. Porque o tempo introduziu novos elementos na paisagem urbana, alterou as escalas e os valores, e, da mesma forma que nada faz crer que o fotógrafo original, se acaso voltasse ao cenário anteriormente registado, repetiria as escolhas anteriores, o segundo fotógrafo tem uma visão própria, uma cultura e uma destreza técnica diferentes das daquele que lhe serve de guia.
Que motivou então o autor das segundas imagens e esta espécie de anulação autoral? Trata-se de um expediente, uma tentativa de contrariar ou anular a fatalidade enunciada por Heraclito (“não nos podemos banhar duas vezes nas águas do mesmo rio), para sublinhar o efeito surpreendente das transformações ocorridas na cidade. Se o mesmo fotógrafo, animado pelas mesmos propósitos com que fotografou em 1920, voltasse em 2010 às Caldas, o resultado dos seus novos registos não poderia deixar de assinalar com dramatismo as transformações ocorridas (ou, com igual intensidade, as permanências e continuidades).
A surpresa que invade o observador de hoje, induzido ao confronto de imagens, contraria a experiência do cidadão habitante ou visitante regular da cidade. Este incorpora a passagem do tempo externa e interna, nas edificações e espaços públicos e em si próprio, observador e participante que é no processo de mudança. Sobressaltou-se com algumas evoluções, estremeceu de ansiedade com os riscos de outras, desejou umas e rejeitou outras, mas a todas absorveu num contínuo e num contíguo que tende a ver a cidade sempre a partir do último “layer”, amalgamando e esbatendo os que o antecederam.
As cidades estão em permanente reconstrução. Todos os dias se abrem e fecham feridas urbanas, se degradam e regeneram equipamentos urbanos, se desfazem e refazem e fazem edificações e artérias urbanas. A imobilidade contraria a experiência da cidade, que é um organismo em uso e, como tal, com exigências quotidianas de reparação e inovação.
E no entanto... não há cidade sem cidade ideal, não há cidade vivida sem cidade imaginária, não há experiência de cidade sem utopia de cidade. Desde o pensamento grego, sem excepção, a cidade dos homens foi confrontada com a cidade dos deuses, dos filósofos, a cidade temporal com a cidade eterna, a cidade das trevas com a cidade da luz. A mais expandida utopia de cidade, no tempo sem ruínas que é o nosso, é a cidade histórica.
A nostalgia da cidade ideal perpassa nos textos dos autores convidados a comentar as imagens. Cada um deles prefere à cidade que vê uma cidade desejada, muitas vezes a cidade da sua infância e adolescência, a cidade que recorda com as emoções que o tempo decantou. Com raras excepções, a passagem do tempo na cidade age em beneficio do passado e não do futuro, na convicção íntima dos observadores urbanos de hoje.
Aparentemente esse é o resultado que podemos esperar de um método de abordagem da passagem do tempo que confronta duas imagens extáticas realizadas com um intervalo significativo. E no entanto, a soma e a qualidade das observações convida à reflexão. A critica – que povoa os textos – propõe uma pausa para pensar. Alguma coisa correu mal com esta cidade?
Se alguma coisa correu mal, talvez um dos planos de análise se situe exactamente na cidade imaginária. Que cidade desejaram as gerações que nos precederam? Que utopia nos legaram que não soubemos ou não quisemos respeitar e integrar?
O debate sobre a cidade é talvez dos debates mais importantes a efectuar. É um debate crucial para a vida colectiva e para o futuro dos cidadãos, um debate fundamental para a democracia e a cidadania. Na cidade, na nossa cidade, há o que nos orgulha e o que nos envergonha. Temos o dever de partilhar organizadamente a visão que formámos do que queremos e não queremos para ela. Essa é a esperança ultima da utopia: fazer melhor cidade com a democracia e pela democracia. Sem ela ficamos prisioneiros do tempo e dos falsos profetas que apresentam como inevitável aquilo que podia não ter sido assim.

Prefácio ao livro Ontem & Hoje, coord. de José Luis Almeida e Silva e Carlos Cipriano. Caldas da Rainha, Gazeta das Caldas, 2014.

quinta-feira, 13 de março de 2014

O viandante. Carlos de Oliveira

Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o galope do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Lisboa. Assírio & Alvim, 2003, p. 35


quarta-feira, 12 de março de 2014

Se tivesse que morrer esta noite regressava. Miguel Serras Pereira

Se tivesse que morrer...

Se tivesse que morrer esta noite regressava
regressava de novo à tua espera à mesma rua
Talvez a mais deixasse aqui apenas
a folha de um recado meio esquecido
Regressava às horas desta tarde relendo devagar
de minuto a minuto o número da tua porta
onde chegaria como há pouco outra vez adiantado

Regressava ao salgueiro onde agora moras
Regressava enquanto a noite que me leve se afastasse
e não te dizia adeus - olhava a terra
as árvores de água profunda onde os rios nascem
ouvindo os pássaros e a brisa do crepúsculo
quando o crepúsculo os confunde num só ramo

Se tivesse que morrer esta noite regressava
navegando a coberto da morte por estas esquinas
que se aceram entre os meus passos e os teus dedos
no olhar amargo que rasguei para te ver
onde a carne do rosto quebra os últimos espelhos

Se tivesse que morrer esta noite regressava
junto de ti até ao fim por um momento
para te dizer que amanhã é outro dia
e que é sempre amanhã ainda onde te encontro

Miguel Serras Pereira, Trinta Embarcações para Regressar Devagar. Lisboa, Relógio d'Água, 1993

terça-feira, 11 de março de 2014

Eu vou sozinho. Camilo Pessanha

Encher a alma

Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordões da caminhada,
Vai já rompendo o sol: vamos embora.

Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem que não o temos na jornada...
Enchamos as cabaças: pela estrada,
D'aqui inda este néctar avigora!...

Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Eu posso resistir à grande calma!...

Deixai-me chorar mais e beber mais,
perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar - encher a alma

Camilo Pessanha, Clepsydra. Edição crítica de Paulo Franchetti. Lisboa, Relógio d'Agua, 1995

segunda-feira, 10 de março de 2014

Cidade imaginária (3)

A cidade e as serras

Conheceram-se numa pequena cidade do Sul. A noite estava quente, jantavam numa esplanada aberta sobre o lago com reflexos prateados e a descoberta da singularidade dos nomes próprios atraiu-os: Maria Eduarda, Jacinto. Mais tarde, ela concordou em antecipar a partida, viajando com ele ainda nessa noite para Lisboa. À chegada, convidou-o a entrar. Estava em mudanças, avisou, naquela semana, a casa transformada num armazém de malas e caixotes.
De Viseu, para onde saiu naquela madrugada de Setembro, ele ligou-lhe à hora de almoço. Estou a ver – ela adivinhou-lhe na voz a perplexidade – uma torre de Nova Iorque atingida por um avião. Não, não é ficção!
Encontraram-se em Aveiro, no fim de semana seguinte. Ele esperava-a na estação e conduziu-a até à Barra. Na pequena praça dominada pelo imponente e belíssimo farol, deram-se as mãos.
Antes de regressarem, marcaram nas agendas: Porto. Depois, o pacto entre eles foi-se definindo. Encontrar-se-iam, sempre que lhes fosse possível, em cidades. Enviavam mensagens a indicar horários, gares e aeroportos, onde também trocavam o beijo da chegada e o longo abraço da despedida. Não colocaram nunca a hipótese de partilharem o quotidiano, que aliás tacitamente ocultavam um ao outro. Coleccionavam avidamente as fotografias que faziam, surpreendendo os pormenores da vida urbana, alguns enquadramentos de edifícios e espaços públicos, seguindo os passos dos residentes.
Durante mais de uma década percorreram boa parte de Portugal e algumas cidades do resto da Europa (Espanha, Itália, França), e foram até Maputo, Toronto, Sidney e Xangai. Foi aqui, quando passeavam numa noite gélida, no cais do Bund, ao longo do rio Huangpu, que ele confessou que não teria tempo de vida senão para mais uma visita. Queres escolher? – perguntou ele. Nova Iorque, onde afinal nunca fomos? Se sou eu a escolher, diz-me a data e eu indicarei o local.
Foi a Tormes que ela o conduziu. Durante dois dias passearam pelas veredas da serra, desde a pequena estação na margem do rio até à "rude" e "silvestre" casa que Eça descreveu, soltando as palavras dos heróis do romance: "Que beleza!". Ele caminhava com dificuldade, mas sem queixumes. Obrigado disse ele, por esta espécie de regresso às origens. Aqui, do campo, sente-se melhor a magnificência  da cidade, essa "criação augusta" de que falava o meu homónimo. Mas só há esplendor da cidade enquanto garantirmos o esplendor do campo.

Texto publicado no semanário Região de Leiria, edição de 6 de Março de 2014

domingo, 9 de março de 2014

Tinha voado com os flamingos. Lídia Jorge

A história é breve e verdadeira [reporta-se a um a caso acontecido entre Maio e Junho de 2007], e narra-se mais ou menos da seguinte forma. Àquela data, ali na zona da península de Setúbal, uma família possuía um papagaio. O papagaio costumava voar para junto dos flamingos, subia para o dorso deles e por ali andava a dizer aquelas coisas que os papagaios dizem. Mas um dia o papagaio desapareceu. Consta que os donos percorreram os sapais de ponta a ponta, e nada. Puseram a anúncio, e nada. Só que ao mesmo tempo que os donos, em Portugal, perdiam a esperança de encontrar o seu papagaio, na Tunísia aparecia um papagaio no meio de um bando de flamingos. Tinha voado com os flamingos. E imaginam, por acaso, como os serviços tunisinos deram por que o papagaio era português? Pela simples razão de que o bicho, entre outras palavras, grasnava "amor, amor, amor". Ora os linguistas locais foram chamados a analisar a palavra insistentemente proferida e descobriram que a entoação era portuguesa de Portugal. Nem amor espanhol, com a aberto, nem amore italiano com as vogais todas ao alto, nem amor brasileiro que prolonga o ô bem fundo e arrasta o r final na profundidade da garganta, encorpando a palavra até ao sussurro. Não, não era nenhum deles - tratava-se do nosso amor, com as vogais bem sumidas, bem contidas, obrigando a pessoa a arredondar os lábios e a recuá-los logo, ao contrário dos franceses, que os têm de unir e fazer avançar em forma de bico ou de beijo. Nada disso, nem redondo, nem bico nem beijo. O "amor" do papagaio era amor pronunciado à portuguesa, rápido, sumido, pronunciado a meio gás, a meio da garganta. O nosso amor. Então a história terminou bem. Descoberta a nacionalidade, os tunisinos ligaram para os homólogos de Portugal, os funcionários foram examinar a lista dos papagaios perdidos e transformaram aquele espécime, de papagaio perdido em papagaio achado.

 Lídia Jorge, Contrato Sentimental. Lisboa, Sextante Editora, 2009, p. 128-129.

sábado, 8 de março de 2014

Viagem no labirinto. Eduardo Lourenço

Beethoven, 3ª Sinfonia, dir. Karajan, 15-XII-1973

Katajan dirigindo a 3ª de Beethoven. Como se a orquestra executasse para ele, médium, foco absorvente das vagas da orquestra, e só seu invisível senhor.
Conduz de olhos fechados, como de cor, vivendo no sentido de Baudelaire a música que nasce simultaneamente dos seus dedos e dos músicos. Espectáculo prodigiosamente romântico como se Beethoven  ressuscitasse. Sinfonia Heróica? Je veux bien. É de uma melancolia pavorosamente terna, viagem no labirinto de um ardente coração, o 2º movimento. 

Eduardo Lourenço, Tempo da Música, Música do Tempo. 2ª edição. Lisboa, Gradiva, 2012, p. 167.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Rumo e linha de rumo. Victor Victorino

O rumo é o ângulo entre o meridiano e a trajectória seguida pelo barco, isto é: o rumo é a direcção em que o barco se desloca - e, como qualquer outra direcção, indica-se em graus, de 000 a 359, a partir do Norte, no sentido em que se movem os ponteiros dum relógio.
Um navio que se mantenha a navegar sempre ao mesmo rumo, isto é, cortando sucessivamente os vários meridianos segundo o mesmo ângulo, descreve à superfície da Esfera Terrestre uma curva denominada linha de rumo ou loxodrómia. Se o rumo for Norte (000º) ou Sul (180º), a linha de rumo será um meridiano; e será um paralelo se o rumo for Leste (090º) ou Oeste (270º). Em todos os outros casos, a linha de rumo é uma espécie de espiral que se aproxima cada vez mais de um dos pólos da Terra, sem jamais o atingir.

Loxodrómia descrita por um navio, navegando ao rumo 060º

Victor Victorino, Navegação Costeira Elementar. Lisboa, Edição do Autor, 1970, p. 7-8.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Interrompeu o sermão, e, sem deixar o púlpito, foi a outra cidade. Machado de Assis

Cranz, citado por Tylor, achou entre os groenlandeses a opinião de que há no homem duas pessoas iguais, que se separam às vezes, como acontece durante o sono, em que uma dorme e a outra sai a caçar e passear. Thompson e outros, apontados em Spencer, afirmam ter encontrado a mesma opinião entre vários povos e raças diversas. O testemunho egípcio (antigo), segundo Maspero, é mais complicado; criam os egípcios que há no homem, além de várias almas espirituais, uma totalmente física, reprodução das feições e dos contornos do corpo, um perfeito fac-símile.
Não quero vir aos testemunhos da nossa língua e tradições, notarei apenas dois: o milagre de Santo Antônio, que, estando a pregar, interrompeu o sermão, e, sem deixar o púlpito, foi a outra cidade salvar o pai da forca, e aqueles maviosos versos de Camões:
Entre mim mesmo e mim
Não sei que se alevantou,
Que tão meu imigo sou.
Que tais versos estejam aqui no sentido figurado, é possível; mas não há prova de não estarem no sentido natural, e que mim e mim mesmo não fossem realmente duas pessoas iguais, tangíveis, visíveis, uma encarando a outra.
Pela minha parte, alucinação ou realidade, aconteceu-me em criança um caso desses. Tinha ido ao quintal de um vizinho tirar umas frutas; meu pai ralhou comigo, e, de noite, na cama, dormindo ou acordado — creio antes que acordado, — vi diante de mim a minha própria figura, que me censurava duramente. Durante alguns dias andei aterrado, e só muito tarde chegava a conciliar o sono; tudo eram medos. Medos de criança, é verdade, impressões vivas e passageiras. Dois meses depois, levado pelos mesmos rapazes, consócios na primeira aventura, senti a alma picada das mesmas esporas, e fui outra vez às mesmas frutas vizinhas.
Tudo isso acudia-me à memória, quando saí da casa de Henriqueta, descompondo-me, com um grande desejo de quebrar a minha própria cara. Senti-me dois, um que argüia, outro que se desculpava. Nomes que eu nem admito que andem na cabeça de outras pessoas a meu respeito, foram então ditos e ouvidos, sem maior indignação, na rua e ao jantar. De noite, para distrair-me, fui ao teatro; mas nos intervalos o duelo era o mesmo, um pouco menos furioso. No fim da noite, estava reconciliado comigo, mediante a obrigação que tomei de não deixar Henriqueta ir para Petrópolis, sem declarar-lhe tudo. Casar com ela ou voltar à província.

Machado de Assis, Obra Completa. Vol. II. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1994.
[Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, de 04/10/1885]

quarta-feira, 5 de março de 2014

Tudo é partir. Luis Filipe Castro Mendes

Cidades

Nunca será esta a cidade que amaste
no segredo da tua infância,
com livros e mapas junto do peito e os sonhos
de mares distantes e mulheres  debruçadas
na amurada dos navios piratas.

Qualquer cidade é pouco para o que traz um sonho.
No entanto, ah, no entanto,
alguns lugares na terra pensaste
que podiam tornar-se uma morada. Mas logo partias
e o encanto de mudar de abrigo se te fazia destino,
destino de adivinhar a linha da costa
a desenhar-se pouco a pouco no horizonte.

Entretanto olhavas as mulheres debruçadas
nas amuradas dos navios.
A nada podemos em verdade chamar nosso.
Tudo é partir e o próprio amor
não passa de um incerto percurso na terra.
Qualquer cidade é aquela mesma cidade
que amaste no segredo da infância,
enquanto os olhos das mulheres
desenham o teu perfil no horizonte de uma perdida costa.

Luis Filipe Castro Mendes, A Misericórdia dos Mercados. Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 54.

terça-feira, 4 de março de 2014

No caminho para a cidade celeste (8). Maria Clara de Almeida Lucas

As árvores e as aves situam-se geralmente em todas estas visões da cidade celeste num jardim, imagem e símbolo do paraíso terrestre, quentes como arquétipo o jardim do Éden, predomínio do reino vegetal em oposição a Jerusalém.
O jardim do início dos tempos representa um microcosmos que ficou expresso nas miniaturas dos jardins japoneses.
Na tradição clássica o jardim aparece ligado à felicidade: foi no jardim das Hespérides que se realizou o casamento de Zeus com Hera, pelo que esse local ficou a simbolizar a felicidade eterna.

Maria Clara Almeida Lucas, "A Cidade Celeste na Hagiografia Medieval Portuguesa", in O Imaginário da Cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/ACARTE, 1989, p. 90.

segunda-feira, 3 de março de 2014

No caminho para a cidade celeste (7). Maria Clara de Almeida Lucas

A árvore aparece, as mais das vezes, habitada por pássaros. Tal acontece no paraíso terrestre de S. Amaro. [...]
Extensão da árvore que as alberga, as aves, dado o seu tipo de locomoção, são o mensageiro ideal para ligar a terra ao céu e trazer aos homens as mensagens dos deuses. Na antiguidade clássica, Eurípedes chama-lhes os "mensageiros dos deuses".
A hagiografia cristã serve-se delas como meio de transporte para o céu de alguns dos seus santos. É da pomba e do corvo que Noé se serve para procurar terra firme: mensageiros, aqui, da boa nova.
Esta relação com a divindade transformou-as em transmissoras da sabedoria divina, sendo comum na Antiguidade a adivinhação por meio do ovo das aves.
Podendo voar, a ave precede o homem na criação do mundo, visto que no Génesis o espírito de Deus, em forma de pomba, plana sobre as águas primordiais.

Maria Clara Almeida Lucas, "A Cidade Celeste na Hagiografia Medieval Portuguesa", in O Imaginário da Cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/ACARTE, 1989, p. 89.

domingo, 2 de março de 2014

No caminho para a cidade celeste (6). Maria Clara de Almeida Lucas

A esta simbologia do centro, altar ou castelo, une-se a da árvore cósmica, símbolo do sustentáculo do mundo. A visão de S. Amaro apresenta-nos uma variante com características orientais. Uma tenda surge como antecâmara celeste, habitação da Virgem. O que caracteriza essa tenda e a torna excepcional em relação às tendas que o homem conhece e pertencem a este seu mundo terreno é que, em vez da árvore que sustenta as tendas profanas, aquela tem um arco de rubis. [...]
A árvore cósmica surge como sustentáculo do mundo com os seus sete braços que correspondem aos sete céus. Sendo assim vital e sagrada, a árvore está no centro do mundo. A ela se chega dificilmente, defendida por monstros ou árduos caminhos, ela dá vida através dos frutos suculentos e engloba em si mesma o mal, como acontece a quem indevidamente toque no fruto da árvore do bem e do mal. A polissemia da árvore, com poder sobre a vida e sobre a morte, confere-lhe o seu carácter simbólico.

Maria Clara Almeida Lucas, "A Cidade Celeste na Hagiografia Medieval Portuguesa", in O Imaginário da Cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/ACARTE, 1989, p. 87.

sábado, 1 de março de 2014

No caminho para a cidade celeste (5). Maria Clara de Almeida Lucas

Geralmente situado no topo de uma elevação, como é o caso de S. Amaro, ou protegido por floresta cerrada, ou, em outras culturas, por barreira de fogo ou água, o castelo ou palácio próprio da paisagem que caracteriza a cidade celeste é de tão difícil acesso e apresenta uma arquitectura sólida (o uso de matérias preciosas conotam-no não só de beleza mas se solidez) dando assim uma sensação de segurança, tal como a casa ou o regaço materno. É pois um símbolo de protecção.
Não é contudo apenas este o motivo porque ele se torna desejável, ao ponto de levar o homem a correr os maiores riscos para o atingir. Ele é geralmente o guardião se algo de maravilhoso: a donzela, no caso dos romances de cavalaria, o tabernáculo da divindade, na hagiografia.

Maria Clara Almeida Lucas, "A Cidade Celeste na Hagiografia Medieval Portuguesa", in O Imaginário da Cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/ACARTE, 1989, p. 85.