quarta-feira, 21 de maio de 2014

Quando lhe perguntam a correr de onde é, ela diz Brasil; quando lhe perguntam com tempo, ela diz Portugal. Alexandra Lucas Coelho

Minnie e Yves em São Gabriel
Conhecemo-nos na igreja e despedimo-nos no teatro. O teatro pertence à igreja e eles não pertencem a ninguém. Ela nasceu na Madeira, ele nasceu no Canadá, moraram em Brasília, agora moram em São Gabriel da Cachoeira, Alto Rio Negro, Amazónia, não muito longe da fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela.
Chamam-lhe Minnie. A Madeira dela não tinha túneis, era lá na Ponta de São Lourenço, hoje reserva natural. Os pais vieram fundar Brasília, adolescência entre pensadores e artistas, de Agostinho da Silva a Darcy Ribeiro. Depois, sex, drugs and rock’n roll, dois maridos, um filho de cada. E depois Yves.
Yves foi jesuíta mas não chegou a ser padre, e hoje tanto fala de budismo zen, como dos sufis do Afeganistão, como está em São Gabriel da Cachoeira por causa do bispo. Foi professor de sociologia na Universidade de Brasília.
Assim se conheceram. Namoraram oito anos em casas separadas, a seguir casaram e “deu muito certo”.
Quando os filhos (dois dela, um dele), ficaram grandes, Minnie e Yves procuraram um lugar para trabalhar com os índios. São Gabriel era o município mais indígena do Brasil e D. Edson, padre próximo da Teologia da Libertação, acabara de ser nomeado bispo. Vieram ter com ele.
A diocese tinha uma casa livre ao lado do teatrinho que D. Edson recuperara. Minnie e Yves alugaram-na. Por Yves, diz Minnie, tinham ficado a morar numa cabana, com uma muda de roupa. Mas ao ver a casa, Minnie não hesitou.

Mosaicos no chão, portadas azuis de madeira, paredes brancas enfeitadas com a cestaria em arumã dos índios baniwa, mais as telas que Minnie pinta.
É o que vemos ao chegar, na nossa última noite em São Gabriel. Na véspera, Yves viera ao nosso encontro na igreja, quando esperávamos entrevistados que não chegaram a aparecer. E chamara Minnie, por ela ser madeirense. Minnie veio com um sorriso que nunca acabou, ficámos logo convidados para almoçar no dia seguinte. Acabámos por transformar o almoço em jantar, e às sete lá estávamos, com D. Edson e o padre António por comensais. Grão-de-bico, beringela, quinoa, vinho chileno, chocolate e pudim de pão, com várias voltas de conversa.
Minnie folheia álbuns sobre os yanomami, mostra desenhos dos baré, com quem trabalhou.
— Eu achava que lhes ia ensinar algo e eles é que sabiam tudo.
Não só pinta como sabe do que pintam os índios no corpo, grafismos sofisticados, oblíquos, por vezes curvos, como aquela asa negra nas omoplatas de uma mulher.
Yves trata da política, sabe o que se passa de Brasília a São Gabriel, trabalha com os presos, indígenas que muitas vezes não tiveram qualquer defesa.
Vamos ao teatro, pelas ervas, depois de jantar. Minnie abre as portas, acende as luzes, iluminando plateia e palco, e daí passamos aos bastidores, que já em si são uma festa. Porque há cabeças de cobra e de jacaré pintadas de verde, com línguas vermelhas de fora. Há saias de palha, cocares de penas, colares de dentes. Há perucas com cristas punks e perucas aos caracóis cor de laranja. Minnie diverte-se com a ideia de experimentarmos tudo. Uma garota de 60 e picos, que ainda não perdeu o travo madeirense. Quando lhe perguntam a correr de onde é, ela diz Brasil. Quando lhe perguntam com tempo, ela diz Portugal.
— Mas não viveria em Portugal.
A casa de Brasília lá está, fora os 2000 livros que Yves já deu. Podiam viver em qualquer lugar, numa praia menos remota, menos quente, mais confortável. Se a muitos brasileiros do Rio, de São Paulo ou de Brasília, Manaus já parece uma espécie de castigo, que dizer de São Gabriel, 1200 quilómetros rio acima?
Nem os filhos os visitam. Tem mosquitos, sabe-se lá o quê.
Mas é por tudo isso que Minnie e Yves aqui moram. Porque aqui estão os que estão longe, aqueles que para muitos brancos não existem.

Alexandra Lucas Coelho, Vai, Brasil. Lisboa. Tinta da China, 2013, p. 156-157.

6 comentários:

  1. Respostas de Dom Erwin Krätler em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos:
    "/.../
    Quando o senhor estava em Koblach, sua cidade natal na Áustria, que movimento interno fez com que o senhor atravessasse o oceano e ficasse aqui por quase meio século, já? O que o levou a fazer um movimento tão largo, tão radical?

    Eu era um jovem como qualquer outro. Estudei, fiz faculdade de Filosofia, tocava violão, fazia teatro. Tenho uma juventude muito bonita, com muitos amigos e amigas. Depois veio o pessoal de outras províncias, que não falavam a nossa língua, o nosso dialeto. E eram colocados à margem. E isso me doía. Mas por quê? Simplesmente porque são diferentes, porque falam outra língua, são excluídos? Nós começamos, então, na juventude, a criar nossos movimentos e a buscar essa gente que ficava na margem. Nós conseguimos integrá-los. Foi nesse momento, ao me confrontar com a exclusão pela diferença, que surgiu a ideia de ser padre. Estudei Teologia, me ordenei. Era da mesma congregação do meu tio, dos Missionários do Sangue de Cristo. Naquele tempo, meus superiores queriam que eu continuasse os estudos de filologia antiga: grego e latim. Eu gosto disso até hoje. Leio a Bíblia em grego, o Novo Testamento.... Mas, de repente caiu a ficha: “Eu vou para o Xingu”. Quer dizer, a gente não dizia: “Eu vou para o Brasil”. A gente dizia: “Eu vou para o Xingu”.
    /.../
    De que forma os presidentes Lula e Dilma teriam desrespeitado a Constituição?

    Os artigos 231 e 232, que na Carta Magna do Brasil tratam dos indígenas, estão sendo desrespeitados. As oitivas indígenas previstas em lei não aconteceram. Podemos inclusive provar que os índios foram enganados. Prometeram-se oitivas a eles e, depois, maquiaram de “oitiva” um simples encontro informal em que os índios foram meros ouvintes e em nenhum momento lhes foi perguntada a sua opinião. Má fé! Enganação! Pouca vergonha! Se o governo toma posições que não se coadunam com a Constituição Federal, então o Brasil, como Estado democrático de Direito, corre sério risco. O governo não está acima da Constituição. Se o governo se comporta de modo inconstitucional, então vivemos novamente numa ditadura.
    /.../"

    Pois é, diria a Deolinda!

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  2. Alguém que escolheu viver tão "rio acima", a 1200 Km de Manaus, deve precisar de tempo para se dizer portuguesa, optando por se dizer brasileira quando "lhe perguntam a correr". Uma madeirense em Manaus não é fácil de explicar. Aliás, é natural que possua dupla nacionalidade. Diz a verdade em qualquer dos casos. O lugar do nascimento, em certas vidas, não é tão determinante como noutras.

    Fernando Pessoa afirmava: "A minha pátria é a língua portuguesa". Era assim no seu caso. Ele que se fazia de palavras.

    Tudo depende das circunstâncias, do mundo, do tempo em que cada qual vive. Cada vez mais pessoas protagonizam singularidades próprias em termos de identidade, neste mundo global. É o caso.

    Muito interessante esta história de Alexandra Lucas Coelho, filha de Eduardo Prado Coelho, segundo julgo. Nem sempre os filhos seguem as pisadas dos pais nisto da escrita e da leitura. Esta família é diferente nesse aspeto.

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  3. Curiosa esta sua questão... Isabel... Há dias, um colega chinês perguntou-me se eu me sentia portuguesa ou europeia... Tive que pensar... Na China, sinto-me europeia... começo frases como nunca, "nós na Europa"... mas identifico-me mais com o nosso idioma... Agora, há cerca de seis ou sete meses, vejo alguns africanos de Angola e de Moçambique e sinto-os como meus conterrâneos... Tenho muito prazer em ouvir-lhes a língua portuguesa... e de saber que temos alguns alunos a trabalhar como intérpretes em África...E com os brasileiros a mesma coisa. Vêm muitos para a Feira de Cantão. O Brasil é um grande mercado. Aos alunos do quarto ano dou uma cadeira que é de lusofonia e disfruto muitíssimo...Este é um assunto de tertúlia... Obrigada!

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  4. E eu noto ainda uma outra particularidade na análise que faz, Deolinda. É que coloca a questão da identidade em termos do continente de onde se provém e não do país. O que é novo, em relação à questão colocada tanto no texto do post como no meu comentário.
    Eu é que agradeço.

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  5. Entre o rio e o céu, a canoa corre ligeiro, debaixo do sol, em cima do espelho de água. Ponto negro movente na imensidão. As praias se escondem esfumadas na distância. A mata é uma faixa escura, no horizonte. Às vezes se projeta invertida, no céu: miragem.
    Isaías na proa vai pilotando de bubuia: a correnteza faz quase todo o serviço. Alma, debaixo da paliçada, se agarra às beiradas. Ainda não se equilibra bem.
    A canoa corre nas águas, o sol sobe nos céus. Isaías sorri recuperado. É a sua infância de canoeiro que se reencarna. O mesmo rio, o mesmo céu e o mesmo remo: este barco de tábua é que não ajuda a deslizar, como minha ubá mairum. No fundo, o arco e as flechas, do filho de Dóia (Leva isso, padre, pode ser que seja preciso. O senhor manda outro para o menino.) Arcozinho de criança, esse talvez eu possa manejar. Ao lado, o monte de peixes moqueados, envoltos em sua própria crosta negra de escamas queimadas. Quase se confundem com as raízes mandioca cozida na casca. Só isto temos para comer. E isto mesmo vamos continuar comendo. Isto e o que eu puder tirar do rio. Conseguirei alguma coisa? Só há fartura de água, de céu, de luz. Isaías, ofuscado, sorri incandescido.
    - O que é que você tem? Está rindo à toa?
    - Eu não! O que vai ser de nós neste mundo grande e pequeno?
    - Sei lá, pior do que o outro não vai ser..
    A canoinha desce o Iparanã. Isaías sentado no tranco da popa, mantém o remo-leme metido n´água. Alma, sentada adiante do toldo, viaja de costas, equilibrando-se precariamente na tábua da proa. Tem toda a cabeça coberta com uma camisola.
    - É melhor você sentar de frente ou se meter debaixo do toldo. Senão vai se torrar com esse sol. Uma insolação é só oque nos falta.
    _ Qual nada! Não posso conversar, sem ver a cara das pessoas. Me explique melhor por que é que você acha que não tem força nem poder para mudar as coisas neste Iparanã.
    - Você nem sabe o que me pede - responde Isaías, convencido de que nem ele nem ninguém, no Iparanã, nada pode contra a ordem das coisas. Eu pelo menos sei que nada posso, se consola: poderia eu, ex-Isaías, atual Avá, que nem Avá sou ainda, pretender o que não puderam, nem São Francisco com a inocência e a bondade, nem São Tomás com a fé e a sabedoria, nem Santo Inácio com a vontade e a astúcia e nem São João da Cruz com a paixão e o carisma? - Seu pecado é vaidade, Alma. Você quer tomar de Deus o que não alcançaram nem Santa Teresa de Jesus, nem Santa Rosa de Lima. Somos umas alminhas à toa, purgando não sei que culpas, nesse mundo sem remédio. E você aí querendo mundos e fundos.
    - Guarde suas palavras, Isaías, não vale a pena gastá-las comigo. Me diga, o que é que você vai fazer aqui?
    - Eu? Uma coisa só: viver a vidinha de todo dia dos mairuns. Comer peixe assado ou cozido que hei de pescar e uma carninha de vez em quando, se estiver com sorte. Minha ambição é voltar ao convívio da minha gente e com a ajuda deles me lavar deste óleo de civilização e cristandade que me impregnou até o fundo. Não gostei nada de mentir para conseguir esta canoa. Menos ainda de mentir para o coitado do Antão. E pergunto, quantos dias mais, quantos meses mais serão necessários para que eu não precise nunca mais jogar o jogo de vocês: mentir e mentir, segundo as regras do seu mundo?
    - Meu...? Eu não tenho nada com isso não, rapaz. Sou contra, tanto como você, até mais. Só estou é perguntando por que você não quer mudá-lo.
    - Mas é precisamente isso. Ninguém pode mudar nada. Se alguma mudança houver, ela surgirá naturalmente. Lentamente, lentissimamente. E as mudanças que eu vejo, todas as que eu posso prever daqui pra frente, são mudanças pra pior.
    - Que pessimismo Isaías. Como é que você pode viver sem esperança? Você aqui, agora, fala como um homem diferente. Nunca pensei que estivesse assim tão sem fé.
    - Que engano! Fé eu tenho. Mas minha fé só dá para essa coisa simples e difícil que é voltar ao convívio de minha gente. Lá vou fazer o que esperam de mim. Só peço é que minhas visões pessimistas não se cumpram já. Peço é que a civilização ande mais devagar, não chegue lá.

    Darcy Ribeiro, in Maíra

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  6. ARAPONGA DA AMAZÓNIA
    Não canto,
    nem calo:
    badalo!

    "Aos quinze dias do mês de setembro do ano de mil novecentos e dez, n'esta egreja parochial de São Sebastião da Pedreira, terceiro bairro de Lisboa, na minha presença compareceram os nubentes José Gomes Ribeiro e Dona Francisca Romana de Quadros Carvalho, os quaes sei serem os proprios com auctorização para o casamento datada de quatorze do corrente mez e assignada pelo Reverendissimo Senhor Arcebispo de Mitylene e sem impedimento algum canonico ou civil para o casamento.
    Elle d'edade de trinta e cinco annos, solteiro, guarda-livros, baptizado na freguesia de São Gonçalo, concelho e diocese do Funchal, filho legitimo de João Gomes Ribeiro e de Dona Ana da Encarnação, ambos naturaes da dita freguesia de São Gonçalo, no Funchal, ilha da Madeira.
    E ella d'edade de vinte e quatro annos, solteira, baptizada na freguesia de São Pedro da Missão do Rio Madeira, diocese do Amazonas, Brazil, e moradora nesta de São Sebastião, na Rua Pedro Nunes, M. Q. R., filha legitima de Antonio Joaquim de Quadros Carvalho e de Dona Anna do Rego Dantas, naturaes , elle da freguesia de São Pedro das Alhadas, concelho da Figueira da Foz, diocese de Coimbra e ella da cidade de Manaus, Estado do Amazonas.
    Os quaes nubentes se receberam por marido e mulher e os uni em matrimonio, procedendo em todo este acto conforme rito da Santa Madre Egreja Catholica Apostolica Romana.
    E para constar lavrei em duplicado este assento que, depois de ser lido e conferido perante os conjuges e as testemunhas comigo assignam collando no duplicado respectivo um sello de cem reis devido por este assento.
    Era ut supra."

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