sexta-feira, 2 de maio de 2014

Cidade imaginária (5)



A passagem

Certificou-se, da porta aberta silenciosamente, que ele dormitava no cadeirão. A luz do fim da tarde penetrava pela janela parcialmente velada. Era possível vislumbrar lá fora o contorno verde escuro de uma colina arborizada e, num plano mais próximo, os telhados e os últimos pisos de um quarteirão urbano.
Compôs a manta que lhe protegia as pernas e passou-lhe ao de leve a mão pela testa. Ouviu-o sussurrar, como se o sonho irrompesse na semi-consciência:
 - Porque  vieste, então, a esta cidade?
Ela continuou o périplo pelo quarto, repondo a ordem dos objectos retirados do seu lugar próprio.
 - Para continuar o jogo! Respondeu, baixinho, levando o candeeiro de pé para junto da secretária.
 - Donde vens? Perguntou ele, continuando de olhos cerrados e respiração de adormecido.
 - Do norte, de onde as cidades tem a energia do granito. - E da indústria. Pegou nos jornais espalhados pelo chão e cadeiras e deitou-os no cesto dos papéis.
 - Onde domina o granito, há rios poderosos... - comentou ele.
 - Vales profundos, margens arroteadas com sofrimento sem par. - E cidades que sonham pontes. Procurou no roupeiro sítio onde arrumar o casaco de malha abandonado nas costas da cadeira.
 - Cidades que adoram ser cortejadas...
 - Mas não seduzidas. Retorquiu ela.
 - Pois, são cidades guerreiras... - Amas a tua cidade! Ele continuava sem dar sinais de ter acordado.
 -  A cidade onde crescemos acompanha-nos pela vida toda. Deitou-lhe água no copo e substituiu o guardanapo amarrotado.
 - Que fazes por ela, pela tua cidade?
 - Imagens.
Ele abriu os olhos, finalmente, e encarou-a fascinado.
 - Capturas a tua cidade?
 - Não é isso, acho eu. A fotografia dá atenção às coisas pequenas de que se faz a cidade. Repara: a roupa que se estende à janela nos domingos de sol. É sempre diferente. Há ruas que percorro centenas de vezes e, de cada vez, descubro novos aspectos, novos ângulos.
 - Parece que descobriste a passagem entre as pedras e o tempo. - Sozinha?
 - Há um amigo meu que me acompanha às vezes. Sorriu, enquanto lhe ajeitava o colarinho da camisa branca. - Mas parece mais interessado em mim que na cidade.
 - Na tua cidade, as mulheres sorriem?
 - Cantam com os lábios, sim, mais do que com a voz.
 - E tu, sorris sempre assim?
Olharam-se de frente. Ele reparou no belo vestido estampado de flores em amarelo, verde e azul, uma mão acima do joelho, nas sandálias de couro que realçavam a elegância do corpo. Ela rodopiou sobre si própria, mirando-o furtivamente, para avaliar o efeito que produzia.
 - Só para quem espera de mim este sorriso.

Texto publicado no semanário Região de Leiria, edição de 30 de Abril de 2014.

13 comentários:

  1. Quando li, não tendo vindo aqui, a introdução da sua publicação no Facebook, lembrei Eduardo Lourenço. Pensei: a cidade onde nascemos é inalterável. Façamos o que fizermos foi sempre ali que nascemos e não noutro sítio e é o facto de ser inalterável que confere sentido ao conceito de identidade. Por isso nos acompanha vida fora.
    Agora espreitei no seu blogue e afinal o conceito que desenvolve não é o que promete no mural de facebook, mas parece-me que nós leitores ficámos a ganhar com o facto. Este texto cria uma cena possível (efeito de verosimilhança indispensável para o tornar credível) pintando-a com uma doçura imensa. Daí resultou um texto maravilhoso que desperta o desejo leitura de novos escritos seus. Parabéns. Assim, lê-lo faz bem à alma.

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  2. Continuo a destacar a eficácia das palavras de mais este texto publicado no Jornal de Leiria, numa rubrica com o sugestivo e inspirado título "Cidade Imaginária". No formato Short Story, o texto revela menos do que sugere ou oculta. E faz-se do conjunto. Como já disse noutra ocasião conjuga de forma muito bem conseguida o registo íntimo - a situação entre o homem e a mulher - e o tema de interesse mais geral sobre que conversam: cidades.
    Até este texto, parece-me, havia sempre uma cidade concreta que estava em causa. Desta vez são as cidades do norte que são vistas a partir de uma cidade do sul. Não é avançado o nome de nenhuma delas. Resta-nos imaginar quais serão.

    Denominador comum das três últimas histórias: a vulnerabilidade masculina. De facto, o homem ou está doente e tem que ser amparado na última viagem a Tormes, destino escolhido pela mulher, ou encontra em Praga uma mulher (super-mulher?) que percorre cidades europeias para disputar corridas, ou conversa numa sala obscurecida a fim de que possa permanecer meio a dormir, sentado num cadeirão, não lhe faltando sequer a manta sobre os joelhos, com uma mulher que não pára quieta, colocando ordem no quarto, que rodopia sobre si mesma... enfim, cheia de energia para sorrir e relembrar as imagens que captura na cidade que ama, a norte.

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  3. SÓ POR DIZER

    Por uma vez, não cito palavras de outrem. Venho aqui só para dizer que, depois desta Cidade Imaginada, restam as imagens e a banda sonora ( o texto não é necessário) de AS PEDRAS E O TEMPO, belíssimo filme, esquecido, do cineasta principiante Fernando Lopes.

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  4. Maria Costa04/05/14, 23:31

    Texto de uma beleza e sensibilidade ímpares! Que homem não queria ter aquela mulher a seu lado? que mulher não quereria ser aquela mulher? Forte como o granito que fazem as nossas cidades do norte, radiante como as flores dos campos que as rodeiam, lutadora, herdeira da têmpera de Afonso Henriques, mas frágil no amor e na perda, desamparada na solidão.

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  5. (...) "O Norte é feminino. O Minho é uma menina. Tem a doçura agreste, a timidez insolente da mulher portuguesa. Como um brinco doirado que luz numa orelha pequenina, o Norte dá nas vistas sem se dar por isso. As raparigas do Norte têm belezas perigosas, olhos verdes-impossíveis, daqueles em que os versos, desde o dia em que nascem, se põem a escrever-se sozinhos. Têm o ar de quem pertence a si própria. Andam de mãos nas ancas. Olham de frente. Pensam em tudo e dizem tudo o que pensam. Confiam, mas não dão confiança. Olho para as raparigas do meu país e acho-as bonitas e honradas, graciosas sem estarem para brincadeiras, bonitas sem serem belas, erguidas pelo nariz, seguras pelo queixo, aprumadas, mas sem vaidade. Acho-as verdadeiras. Acredito nelas. Gosto da vergonha delas, da maneira como coram quando se lhes fala e da maneira como podem puxar de um estalo ou de uma panela, quando se lhes falta ao respeito. Gosto das pequeninas, com o cabelo puxado atrás das orelhas, e das velhas, de carrapito perfeito, que têm os olhos endurecidos de quem passou a vida a cuidar dos outros. Gosto dos brincos, dos sapatos, das saias. Gosto das burguesas, vestidas à maneira, de braço enlaçado nos homens. Fazem-me todas medo, na maneira calada como conduzem as cerimónias e os maridos, mas gosto delas. São mulheres que possuem; são mulheres que pertencem. As mulheres do Norte deveriam mandar neste país. Têm o ar de que sabem o que estão a fazer. Em Viana, durante as festas, são as senhoras em toda a parte. Numa procissão, numa barraca de feira, numa taberna, são elas que decidem silenciosamente. Trabalham três vezes mais que os homens e não lhes dão importância especial. Só descomposturas, e mimos, e carinhos." (...)
    Miguel Esteves Cardoso

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  6. Maria Costa05/05/14, 04:12

    E ela a sentir-se cuidada, sua alma a identificar-se com a alma dele, a rever-se no seu sorriso, a escutar as suas palavras. Palavras sábias e penetrantes. Palavras que escorrem e contaminam. Palavras que aceleram ritmos e projetam anseios. Palavras que cuidam, acariciam, envolvem, abraçam, pulsam, palavras que desfazem nós e fazem entendimentos, que geram sonhos, que põem brio no olhar, que ampliam e dão mais cor ao sorriso dela, palavras que constroem memórias e lhe inventam e desenham o futuro. A ela e a ele .Tal como com as cidades.

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  7. Não conhecia o documentário de Fernando Lopes, As Pedras e o Tempo, de 1961. Acompanha a edição em DVD de Uma Abelha na Chuva. Descobri-o no Youtube. Vou publicar aqui o respectivo link. Obrigado caro anónimo, pela sugestão.

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  8. A propósito do texto, algumas respostas a algumas perguntas:

    " - O texto é, então, a arte do verbal, do olhar, da confidência e do paraíso?
    - Do verbal e do olhar. Do paraíso, talvez.
    - Talvez?
    - Depende do olhar. É a arte do há. Do que há entre.
    - E a confidência?
    - É o que estamos a sofrer... o que há entre os olhares. Quer a árvore ou a confidência?
    - A árvore."
    - Maria Gabriela Llansol, Inquérito às Quatro Confidências (1996), Lisboa: Relógio d'Água Editores (p. 44)

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  9. Ainda a propósito da assimilação deste texto a um documentário. Este texto, pelo menos, tem um ponto de partida cimeatográfico: a chegada de Lisa (Grace Kelly) ao quarto de Jeffries (James Stewart) no filme Janela Indiscreta de Hitchcock. Mas enquanto neste ele é o fotógrafo, neste texto a fotógrafa é ela.

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  10. Julgo que tem razão, Isabel X., quanto á vulnerabilidade masculina. Bons observadores são os que lêem os textos no que eles são e não no que os leitores são e muito menos no que os leitores supoem que os autores são.

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  11. Agradeço muito as boas palavras de estimulo aqui deixadas, mesmo quando nelas não posso deixar de reconhecer manifesto exagero, ditado certamente por alguma surpresa que estes pequenos e tão esforçados textos possam ter suscitado. Fico muito surpreendido. Agradavelmente, claro. Até daqui a um mês.

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  12. Quantas horas para aqui chegar! Vou reler!

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  13. Sorrio! Quem escreve assim deveria ser obrigado a escrever diariamente! Gosto deste "corte" antes e depois... gosto do durante... Obrigada pelo apelo que me obrigou a chegar rápido...

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