sábado, 3 de maio de 2014

A viagem de Fermina Daza e Florentino Ariza (1). Gabriel Garcia Marquez

Durante o dia jogavam às cartas, comiam até não poder mais, faziam umas sestas de granito que os deixavam exaustos e mal o sol descia, davam largas à orquestra e bebiam licor de anis com salmão passando dos limites da saciedade. Foi uma viagem rápida, com o navio leve e águas favoráveis, melhoradas pelas torrentes que se precipitavam dos cumes onde choveu tanto naquela semana como durante todo o trajecto. Algumas aldeias disparavam tiros de canhão misericordiosos para afastar a cólera e eles agradeciam com um rugido triste. Os navios de qualquer companhia que se cruzavam com eles pelo caminho mandavam-lhe sinais de condolências. Na povoação de Magangué, onde nasceu Mercedes, carregaram lenha para o resto da viagem.
Fermina Daza assustou-se quando começou a sentir a sirene do navio dentro do ouvido são, mas, no segundo dia de anis, ouvia melhor dos dois. Descobriu que as rosas tinham mais perfume do que antes, que os pássaros ao amanhecer cantavam muito melhor que antes e que Deus tinha feito um manatim* e o colocara no areal de Tamalameque só para a acordar.
O comandante ouviu-o, deixou o navio à deriva e viram por fim a matrona enorme a amamentar a sua cria nos braços. Nem Florentino nem Fermina se deram conta de quanto se confundiam: ela ajudava-.o com os clisteres, levantava-se antes deles para lhe escovar a dentadura postiça que ele deixava no copo enquanto dormia e resolveu o problema dos óculos perdidos, pois conseguia ler e passajar com os dele. Certa manhã, ao acordar, viu-o na sombra a pregar um botão na camisa e apressou-se a fazê-lo antes que se repetisse a frase ritual de fazerem falta duas esposas. Em troca, a única coisa que ela precisou dele foi que lhe pusesse uma ventosa por causa de uma dor nas costas.
Florentino Ariza, pelo seu lado, pôs-se a remexer nas nostalgias com o violino da orquestra e em meio dia foi capaz de executar para ela a valsa d'A Deusa Coroada, e tocou-a durante horas até o obrigarem a parar. Uma noite, pela primeira vez na sua via, Fermina Daza acordou sufocada por um pranto que não era de raiva mas de pena, pela recordação dos velhinhos do bote assassinados à paulada pelo barqueiro. Por outro lado, a chuva incessante não a comoveu e pensou demasiado tarde que Paris talvez não tivesse sido tão lúgubre como ela achava, nem Santa Fé tinha tantos enterros pelas ruas. O sonho de outras viagens futuras com Florentino Ariza ergueu-se no horizonte: viagens malucas, sem tantos baús, sem compromissos sociais: viagens de amor.

Gabriel Garcia Marquez, Amor nos Tempos de Cólera. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987, p. 366-367.

* Manatim ou peixe-boi. Mamífero de grande dimensões (chega quase aos três metros) que habita os grandes rios da América do Sul, nomeadamente o Amazonas.

2 comentários:

  1. APRENDER OUTRA VEZ DESDE O PRINCÍPIO

    Creio que foi um francês que disse: "Não há homens impotentes, mas sim mulheres que não sabem". Com efeito, apesar de muito poucos o reconhecerem, todo o homem normal chega morto de medo a uma experiência sexual nova. A explicação desse medo, creio eu, é cultural: tem medo de ficar mal perante a mulher, e na realidade fica mal, porque o medo o impede de ficar tão bem como lhe impõe o seu machismo. Nesse sentido, somos todos impotentes, e apenas a compreensão e a ajuda da mulher nos permite prosseguir com certo decoro. Não é mau: isso dá um encanto adicional ao amor, no sentido de que cada vez é como se fosse a primeira, e cada casal tem que começar a aprender outra vez desde o princípio como se fosse a primeira tentativa de cada um.

    Gabriel Carcía Marquez / Plínio Apuleyyo Mendoza, O AROMA DA GOIABA, Lisboa, Livros Dom Quixote, 2005, pp. 183.

    ResponderEliminar
  2. Maria Costa05/05/14, 23:27

    pequeno espanador de tristezas (a derradeira confissão?)

    foi com as mãos sujas de restos de amor que estiquei uma madrugada. quando digo a palavra madrugada também sinto um esticão no coração. se agora abuso muito das madrugadas é porque cada uma delas tem restos de amor que eu sempre vou perdendo. qualquer dia acumulo esses restos todos e faço uma construção de amos (talvez chame uma mulher para se encostar ao outro lado dessa construção). a palavra amor pode ser um labirinto com mais de catorze lados avessos. depois de esticar uma madrugada encosto a madrugada na minha pele e espero. a pele gosta de ser esculpida de novo muitas vezes na vida.
    se puser um «v» na palavra esticar, poderei estivar uma madrugada. aí elevo-me a estivador de madrugadas e posso pensar num caixote com luar, um caixote com geada, caixotes pesados de estrelas, caixotes de nuvens carregadas de pingos, um caixote hermético com lágrimas, uma caixinha de costura com restos concretos de amor.

    Ondjaki, in materiais para confeção de um espanador de tristezas

    ResponderEliminar