segunda-feira, 17 de março de 2014

Saberei, talvez, no fim desta viagem. Ruy Duarte de Carvalho

Saberei ainda assim que a Ipiranga cruza a avenida São João onde sangue de um crime, segundo Vansolini, domador de serpentes no Butantã, pode sempre estar escorrendo de algum bar onde haja malandro jogando bilhar, mas que sei eu de resistências brasileiras a ditaduras para mim alheias? Saberei talvez alguma coisa de governos que em África podem perpetuar-se porque aproveitam situações que não dão alternativa e sabem adaptar-se aos discursos e à prática que mais convêm aos tempos políticos que se vão sucedendo sem que isso os leve a alterar o regime que apurarem para o exercício do domínio interno e a prosperidade de quem tomou, já faz muito tempo, conta do poder. Mas que sei eu do São Paulo e do Brasil de agora e daquele que entretanto decorreu enquanto as nossas guerras nos mantinham entretidos? Saberei, talvez, no fim desta viagem. E de qualquer maneira a viagem que tenho pela frente, vou fazê-la de facto porque ao longo da vida sempre fui mantendo o Brasil como paixão, ancorado numa condição periférica de angolano excêntrico em que apesar de tudo consegui manter-me coexistindo sempre com meia dúzia de referências, nomes de autores, personagens brasileiras, e painéis inteiros de paisagens que confundi com as minhas. Penso isto tudo, já, olhando para fora, apontando o olhar à direcção nordeste. Não ligo para o céu baixo de chumbo derramado e frio, mentor de neblinas, garroas macias, cálidas quase e lentas que enquanto aqui estiver não vão nunca deixar de me fazer lembrar que habito um lugar que é como o café quer, nem para as torres de betão que assim de tais alturas se me impõem, erectas e limpas, sobre a ondulação assente dos telhados baixos de Pinheiros e da Vila Madalena, e eis um recorte que me rende a São Paulo.

Ruy Duarte de Carvalho, Desmedida. Crónicas do Brasil. Lisboa, Edições Cotovia, 2006. p. 56-57

4 comentários:

  1. Era ele, outra vez!
    E foi ele, perpetuamente! Foi ele em Singapura e em Ceilão. Foi ele erguendo-se dos areais do deserto ao passarmos no canal de Suez; adiantando-se à proa de um barco de provisões quando parámos em Malta; resvalando sobre as rosadas montanhas da Sicília; emergindo dos nevoeiros que cercam o morro de Gibraltar! Quando desembarquei em Lisboa, no Cais das Colunas, a sua figura bojuda enchia todo o arco da Rua Augusta; o seu olho oblíquo fixava-me – e os dois olhos pintados do seu papagaio pareciam fixar-me
    também...
    VI I I
    Então, certo que não poderia jamais aplacar Ti Chin-Fu, toda essa noite no meu quarto ao Loreto, onde como outrora as velas inumeráveis das serpentinas davam aos damascos tons de sangue fresco, meditei sacudir de mim, como um adorno de pecado, esses milhões sobrenaturais. E assim me libertaria talvez daquela pança e daquele papagaio abominável!
    Abandonei o palacete ao Loreto, a existência de nababo. Fui, com uma quinzena coçada, realugar o meu quarto na casa da Madame Marques: e voltei à repartição, de espinhaço curvo, a implorar os meus vinte mil réis mensais, e a minha doce pena de amanuense!...
    Mas um sofrimento maior veio amargurar os meus dias. Julgando-me arruinado todos aqueles que a minha opulência humilhara cobriram-me de ofensas, como se alastra de lixo uma estátua derrubada de príncipe decaído. Os jornais, num triunfo de ironia, achincalharam a minha miséria. A Aristocracia, que balbuciara adulações aos pés do nababo, ordenava agora aos seus cocheiros que atropelassem nas ruas o corpo encolhido do plumitivo de secretaria. O Clero, que eu enriquecera, acusava-me de «feiticeiro»; o Povo atirou-me pedras; /…/ vi diante de mim o Personagem vestido de preto com o guarda-chuva debaixo do braço, o mesmo que no meu quarto feliz da Travessa da Conceição me fizera, a um ti-li-tim de campainha, herdar tantos milhões detestáveis. Corri para ele, agarrei-me às abas da sua sobrecasaca burguesa, bradei:
    – Livra-me das minhas riquezas! Ressuscita o Mandarim! Restitui-me a paz da miséria!
    Ele passou gravemente o seu guarda-chuva para debaixo do outro braço, e respondeu com bondade:
    – Não pode ser, meu prezado senhor, não pode ser...
    Eu atirei-me aos seus pés numa suplicação abjecta: mas só vi diante de mim, sob uma luz mortiça de gás, a forma magra de um cão farejando o lixo.
    Nunca mais encontrei este indivíduo. – E agora o mundo parece-me um imenso montão de ruínas onde a minha alma solitária, como um exilado que erra por entre colunas tombadas, geme, sem descontinuar...
    As flores dos meus aposentos murcham e ninguém as renova: toda a luz me parece uma tocha: e quando as minhas amantes vêm, na brancura dos seus penteadores, encostar-se ao meu leito, eu choro – como se avistasse a legião amortalhada das minhas alegrias defuntas...
    Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele lego os meus milhões ao Demónio; pertencem-lhe; ele que os reclame e que os reparta...
    E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: «Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!»
    E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!

    Angers – Junho de 1880
    www.neolivros.com

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  2. COMIDAS

    Comer efó,
    pimenta, jiló!
    Iaiá me coma,
    sou quimbombô!
    Cobrei sustância
    com mocotó!
    Iaiá me diga,
    nessa comida
    você botou
    mulata em pó?

    Iaiá me coma
    sou quimbombô!
    [...]

    Jorge de Lima, ANTOLOGIA POÉTICA DE JORGE DE LIMA, Porto, Ed. Sousa & Almeida, Lda., 1964, p. 47.

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  3. Caro viajante curioso!
    Uma sugestão de viagem imperdível: pela Ode Marítima, com a criação poderosa de Diogo Infante, na encenação expressiva e austera (palavra que temos que continuar a usar, então!…) de Natália Luísa, pontuada por umas notas de magia de João Gil . E como é possível que exista um tal silêncio sobre esta fantástica produção??? Já não há críticos de teatro? Z

    Flutuar como alma da vida, partir como voz,
    Viver o momento tremulamente sobre águas eternas.
    Acordar para dias mais directos que os dias da Europa.
    Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar,
    Virar cabos longínquos para súbitas vastas paisagens
    Por inumeráveis encostas atónitas...

    Ode Marítima
    Poesias de Álvaro de Campos , ed. Ática, 1964, p. 164

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  4. "Todos os homens se nutrem, mas poucos sabem distinguir os sabores." Confúcio

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