segunda-feira, 31 de março de 2014

Quem não aceitará como dádiva celestial o transitório esforço de uma ascensão de montanha? (4) Ramalho Ortigão

O pó das estradas e o suor da marcha constituem o mais módico preço por que se pode pagar a delícia do banho, o jubiloso prazer da pele tonificada pela espuma do sabão e pelos jorros da água fria.
Quem não aceitará como dádiva celestial o transitório esforço de uma ascensão de montanha, tendo, uma vez na vida, gozado a satisfação inefável de ir dormir, ao cabo de um dia de Verão, a 1500 metros de altitude, a uma temperatura de 2 graus centígrados, debaixo da tenda de campanha, numa fofa cama de fetos, envolto na serenidade do infinito silêncio, com uma clavina debaixo do travesseiro e um perdigueiro aos pés, ao clarão perfumado e extático da grande fogueira de urze e de azinho, como nos últimos planaltos do Gerês?
A perspectiva do desconforto nas hospedarias basta para fazer desmaiar de pavor o habitante da nossa Baixa, a quem fizeram crer que todos os percevejos da província estão por essas camas à espera dele, para se emborracharem uma vez na vida com sangue da capital, o qual, pelo que é de escanfrado e de aquoso, deve ser precisamente, para os percevejos que bebem disso, a mais fraudulenta e desacreditada zurrapa de todo o reino.

Ramalho Ortigão, "Carta à Academia de Estudos Livres", datada de 6 de Agosto de 1899. publicada em Costumes e Perfis. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944, p. 278-279.

1 comentário:

  1. UMA SERRA SERRANA

    Mas, se querem ver uma serra bem serrana, em que a beleza se desprende apenas dos panoramas que se rasgam desde alterosos balcões de rocha sobre os vales e as fitas de prata dos rios, coleando nos abismos; da abundância tumultuosa da frescura das águas, palrando em jorros e cascatas nos declives abruptos; do silvestre e bucólico das matas, em que predomina o carvalho roble, o pinheiro manso e a urze em flor; da fauna brava, onde se contam, embora rareando, a corça, a cabra selvagem, o javali, o lobo e a águia, e onde o próprio habitante, longe de afeiçoar a serra, é moldado por ela a ponto de tornar-se uma rude e vigorosa imagem da humanidade pré-histórica, então venham à Serra do Gerês penetrar-se da sua essência primitiva e cândida.
    Por lá andámos. Subimos o rio Gerês até aos manadeiros; baixámos a Leonte até ao Homem, que subimos entre paredões estéreis e dramáticos, remontando às suas fontes junto dos Carris; e ali, já no recinto da mina de volfrâmio e do penedo da Saudade, a 1500 metros, divisámos as terras de Barroso e Montalegre e os infindáveis planaltos de Trás-os-Montes.

    Jaime Cortesão, PORTUGAL. A TERRA E O HOMEM, apresentação de Urbano Tavares Rodrigues e ilustrações de Manuel Lapa, Lisboa, Artis, 1966, p. 28.

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