quinta-feira, 27 de março de 2014

Faz ou desfaz. Nicolas Bouvier

Uma viagem dispensa justificações. Depressa provará que se basta a si própria. Tencionamos fazer uma viagem, mas será a viagem que nos faz, ou desfaz.

Nicolas Bouvier, L' Usage du Monde. Paris, Éditions Payot et Rivages, 2001 [1963], p. 12.

3 comentários:

  1. "No princípio era o acto" em vez de "no princípio era o verbo".

    Viagem, o acto ou a acção em sua crua pureza.

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  2. Esta ideia de que a viagem é que nos "faz, ou desfaz" pode ser transposta para outras experiências de vida com proveito reflexivo equivalente. Porque isto dá que pensar, sem dúvida...

    Fez-me lembrar uma passagem de Baudrillard sobre o acto de fotografar que me impressionou quando a li e sempre que a releio: "Vous croyez photographier tel scène pour plaisir - en fait c'est elle que veut être photographiée, vous n'êtes que le figurant de sa mise en scène. Le sujet n'est que l'agent de l'apparition ironique des choses."
    Baudrillard (1990) La Transparence du Mal. Paris: Galilée (p. 153)

    O pensamento de Bouvier é mais profícuo, na medida em que revela (e releva) o efeito que em nós pode ter - independente, em si mesmo - um acto que decorreu de uma intenção nossa, ou seja, de algo que supúnhamos dominar. Neste caso, a viagem.

    Ainda bem que assim é. Se não a vida dar-nos-ia muito poucas hipóteses de nos modificarmos. Seria muito menos interessante.

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  3. E A VIAGEM QUE MAL SE FAZ...

    Nas praias e cais do Tejo, até Belém, espalhavam-se pacotes, caixas e baús abandonados na última hora. No meio da bagunça e por descuido, toda a prataria da Igreja Patriarcal, trazida por catorze carros, foi esquecida na beira do rio e só alguns dias depois voltou para a igreja. Carros de luxo foram abandonados, muitos sem terem sido descarregados. Houve até quem largasse a mala, embarcando de mãos vazias, apenas com a roupa do corpo. O marquês de Vagos percebeu um pouco tarde que as carruagens e os arreios da casa real haviam sido deixados para trás e, ali mesmo, do convés do navio onde se acomodara e que já partia, teve tempo de expedir um aviso "em linguagem rude" para que fretassem um "iate" para transportar todo aquele equipamento para o Brasil. O tom geral era de nervosismo e destempero. [...]
    As descrições sobre o embarque de D. João são, em geral, pungentes e por vezes contraditórias. Numa das versões, ele teria chegado ao cais vestido de mulher; em outra, teria partido durante a noite a fim de evitar maior reacção popular. Numa terceira, terá entrado no porto acompanhado apenas por seu sobrinho, e ninguém o aguardava. Dois cabos da polícia que estavam ali por acaso, ajudados por gente do povo e debaixo de forte chuva, colocaram algumas tábuas sobre a lama para que pudessem caminhar até ao coche e de lá tirar D. João, que, carregado por esses desconhecidos, foi acomodado na galeota que o conduziria ao navio Príncipe Real, atracado na barra do Tejo.

    Lilia Moritz Schwarcz et al., A LONGA VIAGEM DA BIBLIOTECA DOS REIS. DO TERREMOTO DE LISBOA À INDEPENDÊNCIA DO BRASIL, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, pp. 214-215.

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