segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Eu não tinha feito a mala à espera de viajar sozinha. Erica Jong

Arrastei a minha mala de novo para o café na Place St. Michel. Subitamente, sem um homem, vi como ela era pesada. Eu não tinha feito a mala à espera de viajar sozinha. A minha mala estava cheia de guias turísticos, um pequeno gravador para o artigo que não chegara a escrever, blocos de notas, os meus rolos de cabelo eléctricos, dez exemplares do meu primeiro livro de poemas. Alguns deles eram para ser dados a um agente literário em Londres. Outros, eu levava simplesmente por causa da insegurança; "crachats" de identificação para mostrar a quem quer que eu conhecesse. Destinavam-se a provar que eu não era uma mulher vulgar. Destinavam-se a provar que me devia ser dado um salvo conduto. Eu agarrava-me desesperadamente ao meu estatuto como uma excepção porque, sem ele, eu não passava de mais uma mulher sozinha, no engate.
- Tenho a tua morada? - perguntou Adrian antes de partir no Triumph.
- Está no livro que te dei, na última página.
Mas ele tinha perdido o livro.

Eriça Jong, Medo de Voar. Mem Martis, Europa-América, 1973, p. 244.

domingo, 29 de setembro de 2013

Pronto a partir. Adolphe Appian

Adolphe Appian, La Plage. Ca 1880

sábado, 28 de setembro de 2013

Viajando em pensamento. Goethe

Agora amigo, ao regressar do mundo vasto, quantas esperanças frustradas, quantos planos destruídos! Olhei as montanhas em frente, que mil vezes haviam sido o objecto dos meus desejos. Era capaz de me sentar horas a fio, viajando em pensamento até lá, de me perder, com fervor, por florestas e vales que, envoltos em névoa, pareciam sorrir-me: e, quando, a uma hora certa, tinha de regressar, com que relutância não deixava aquele lugar amado!

Johann Wolfgang von Goethe, A Paixão do Jovem Werther. Vila do Conde, Quidnovi, 2012, p. 92.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

As viagens das palavras (II). Carolina Michaëlis de Vasconcelos


Os caminhos percorridos por certos vocábulos são muitas vezes rodeios. Antes de serem portugueses, bastantes passaram por países diversos, alterando-se pouco a pouco, distanciando-se cada vez mais da sua origem.
Pela boca de Franceses, Italianos, Espanhóis entraram às vezes latinismos em travesti que os torna quase irreconhecíveis.
Ideias e formações greco-arábicas espalharam-se no Oriente, na Pérsia, na Índia, antes que de lá fossem transmitidos às nações europeias.
Com os livros e mais do que eles, os vocábulos têm fadário curiosos: Habent sua fata vocabula.
Vejamos alguns exemplos.
Mais uma vez lembro os numerosos rebentos do latim planus no nosso português: o adjectivo e substantivo popular chão; o erudito plano; o castelhano lhano usado só com acepção abstracta de despretencioso, sincero, franco; o piano da Itália;  o advérbio pram ou de pram, tirado de plane, muito usado na época galego-portuguesa; esse mesmo elevado a substantivo em linguagem náutica vulgar na forma porão; e também os nomes de lugar Alporão, Alplan, arabizado pelo artigo al.
Frei, abreviatura de freire, veio da Provença, onde se desenvolvera de fradre, fratre – morto na Península por motivo difícil de explicar.
Monge veio igualmente da Provença, sendo grego de origem (monachos), conforme expliquei na lição prática.
Avaria foi transmitido a todo do Ocidente pelos marinheiros de Génova, mas as suas raízes estão na Arábia.
Yacht, navio de recreio e de aparato, foi introduzido por Ingleses, que o receberam da Holanda, mas no fundo é alemão: Jagd (de jagen).
Chefe, vindo de França, é representante directo do substantivo latino caput, que já cá tínhamos na forma de cabo.
Jaula (de leão) é caveola, diminutivo de cava, que já nos dera a gaiola (de pássaros).
Sorvete, com sorveteira, de introdução recente, é evidentemente o francês sorbet, sorbetière, muito embora em Paris se dê esse nome ao que nós chamamos carapinhada e não ao gelado pastoso que os bons portugueses chamam neve. Para França viera de Itália, que recebera dos Turcos sorbetto, ou pelo menos a raiz sorb, transposição de xurb derivado do verbo árabe xarab, beber. Verbo que com as suas três consoantes radicais (três em todas as vozes arábicas), x, r, b, talvez seja parente do latim sorb, se efectivamente houver parentesco ou mesmo unidade primitiva entre línguas indo-germãnicas e semíticas. Como pensam alguns glotólogos muito avançados.
Em todo o caso xarab já nos dera xarope, antigamente axarave. Esse, latinizado, dera aos Franceses, sirop (alemão Syrup).
Tremoço, em castelhano atramuz, representa o árabe attarmôs, attermôs, mas este não é nada mais do que o grego thermos (nome da lupina, aparentado ou não com thermós, calor).
Triaga, em castelhano atriaga, tem as mesmas origens: da Grécia passara à Arábia.
Barca, vocábulo hoje internacional, empregado cedo em Portugal (numa inscrição latina de Tavira, do Algarve, do século I ou II), passou longos tempos por ser fenício ou cartaginês, simplesmente porque os Fenícios foram grandes navegadores e colonizaram sobretudo a costa sul da península. Talvez também porque o pai de Hannibal (Hamilcar) tivera o sobrenome de Barkas. Mas em cartaginês ou púnico Barkas significa relâmpago. Barca, embarcação, entrou em sermo vulgaris da Itália por intermédio dos Gregos na forma baris, de que eles fizeram barica e depois barca.
Baris, por sua vez, é um dos empréstimos que a Grécia levantara no Egipto.
Entre os Egípcios modernos (os Coptos) bárias ainda hoje se emprega.
De resto essa proveniência não era desconhecida. Só esquecida. O próprio Heródoto a indicara.
É costume geral, justificado, englobar vocábulos desses sempre om os da última língua que foi a intermediária directa.
Assim, diz-se simplesmente que barca vem do latim vulgar; chefe, jaula, sorvete são franceses; yacht é inglês, avaria italiano; frei e monge são provençais; tremoço e triaga são árabes; com o que não quero dizer que não seja bom retroceder, à procura das verdadeiras origens, até onde possamos.

Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Lições de Filologia Portuguesa. Segundo as Prelecções feitas aos Cursos de 1911/12 e !912/13. Lisboa, Revista de Portugal, 1956, p. 285-287.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

As viagens das palavras (I). Carolina Michaëlis de Vasconcelos


Quanto à utilidade dos elementos estranhos, ou ao prejuízo que causam, é certo que nenhuma nação civilizada passa sem eles. A faculdade genial que criou as línguas humanas, em milhares de séculos, extinguiu-se, mas não se extinguiu a que constantemente produz objectos novos e descobre factos e fenómenos desconhecidos. E, por mais fértil que seja a faculdade de formar derivados e compostos, ela tem os seus limites.
Por isso os povos trocam entre si não só os seus produtos mas também os seus nomes.
Do mesmo modo literatura alguma pode passar sem termos livrescos, poéticos, sublimados, que em estilo elevado substituem os já gastos pelo uso diário.
Eles embelezam a expressão das ideias e facilitam o estudo de línguas estrangeiras e das ciências. Combater os Lehne Fremdwörter é quixotesco.
Imaginem que dificuldade seria se cada língua, em lugar de se servir da terminologia científica internacional (greco-latina), inventasse para denominar a electricidade, o telefone, o telegrama, a radiografia, palavras exclusivamente suas, diferençadas.

Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Lições de Filologia Portuguesa. Segundo as Prelecções feitas aos Cursos de 1911/12 e !912/13. Lisboa, Revista de Portugal, 1956, p. 284.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Regressantes. Tomaz Vieira

Tomaz Vieira, Os Regressantes, 1938

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Banhei-me de entardecer. Urbano Tavares Rodrigues

Ontem, regressado de Lisboa com um fim de tarde que tingia de rosa as areias do Tejo. As velas, no rio, suaves, sulcando as águas roxas. Despedida de uma paisagem com a qual raramente comuniquei, por falta de serenidade de espírito. Ontem, cansado, banhei-me de entardecer. E assim levarei nos olhos para o Inverno as palmeiras e os pinheiritos dessorados e todo o cenário brando, até as casa pretensiosas que margeiam a via férrea. Tudo era lindo até à hora em que as coisas adoecem de cor. Sobretudo os barcos, tão lentos, no rio, e o areal rosado, sem ninguém.

Urbano Tavares Rodrigues, De Florença a Nova Iorque. Lisboa, Portugália Editora, 1963, p. 86.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Resolvi ficar e ir já para a Foz. Eça de Queirós

Porto [Julho ou Agosto de 1871]

Meu querido Ramalho
Tencionava partir além de amanhã para aí - mas mudei de resolução em vista destas considerações.
Os médicos prescrevem-me impreterivelmente, urgentemente, o uso de banhos de mar. Para os nervos, para a anemia e para a vista. Ora, eu não quero tomar banhos nas praias de Lisboa, que são ou de lodo - ou de soirée dançante - coisas igualmente detestáveis.
Tenho pois de tomar banhos ou aqui na Foz ou em Espinho. Por consequência se fosse a Lisboa tinha de voltar em Setembro, querendo Deus: só em viagens gastava 4 ou 5 libras - o que é antieconómico. Resolvi pois ficar e ir já para a Foz.
Mas para regular a minha vida, e basear cálculos, preciso que você me diga - se tem algum dinheiro meu aí das nossas Farpas.
Francisco entregou-me aqui 13$000 rs.; faça pois as suas contas e diga-me se posso contar com algum dinheiro que aí tenha. Sem esta base, não posso fazer cálculos à minha embrulhada vida. Depois ou resolverei ficar - ou partir para aí, melancolicamente, a cultivar a Deusa dos Mares.
Resposta rápida. No caso de eu ficar, trataremos de reequilibrar o nosso trabalho sobre As Farpas.
Seu do C.
Queiroz 

Eça de Queiroz. Correspondência. Organização e notas de A. Campos Matos. Vol I. Lisboa, Caminho, 2008, p. 52-53

domingo, 22 de setembro de 2013

No Alandroal. Com José Leite de Vasconcelos

Na Páscoa de 1915 e em Maio de 1916, o director do Museu Etnológico Português, José Leite de Vasconcelos, viajou até ao Alentejo, a convite de amigos seus, com o objectivo de recolher artefactos para a instituição que dirigia. Visitou Alandroal, Évora, Vila Viçosa, Estremoz, Campo Maior, Elvas e Redondo. Dessa viagem e do que dela resultou para o acervo do Museu, deixou-nos um relatório circunstanciado (que há dias adquiri num alfarrabista): Entre Tejo e Odiana, Lisboa, Imprensa Nacional, 1917 (Separata de O Arqueólogo Português, XXI, n. 1-12 de 1916.

Um trecho deste relato (p. 12)

4 de Abril de 1915 - Neste dia, que era Domingo de Páscoa, proporcionou-me o Sr. Belo e sua Ex.ma esposa, a Sr.a D.a Mariana de Sousa Rosado Belo, uma útil e agradável excursão à aldeia do Rosário. Saímos do Alandroal, depois do meio-dia, e tomámos a estrada municipal, aos pedaços ladeada de eucaliptos e de olaias floridas. De uma e outra  banda avistam-se montes, que com a sua cal branca vivificam a paisagem, de si muito nua.
Parámos em alguns, à procura de objectos que pudessem servir para o Museu. Já noutros meus trabalhos me tenho referido à limpeza e arranjo do interior das casas alentejanas: na sala de entrada vê-se sempre uma mesa enfeitada com bugigangas artísticas; das paredes pendem quadros ou espelhos; a cozinha é um museu de Etnografia: faiança colorida (geralmente da fábrica coimbrã), estendida com o arame num friso ou cimalha, que umas vezes faz parte do pano da chaminé, outras está fronteiro a ela; a cantareira (ou conjunto de louça comum, disposta por tamanhos no poial dos cântaros, e detrás destes); a estanheira; o copeiro recortado; a garfeira; uma mesinha baixa para a comida; bancos de troncos de árvores (chamados cavalos ou burros); tropeços de cortiça no chão para as crianças se sentarem ao lume. Este alinhamento físico está de acordo com o caracter dos Alentejanos, de ordinário pautados e sinceros no que dizem e fazem. Uma cantiga popular sintetiza perfeitamente as duas qualidades a que me refiro:
Nas terras do Alentejo
É tudo tão asseado!
As casas e os corações
Sempre tudo anda lavado!

sábado, 21 de setembro de 2013

Memória de D. Pedro. Setembro de 2013

Há factos que mudam a história. Foi o caso do desembarque aqui assinalado. Recebeu uma designação toponímica incorrecta: Mindelo. O local em que D. Maria recordou o acto de seu pai, erguendo um padrão que é hoje monumento nacional, tomou a designação nos nossos dias de Praia da Memória (a seguir a Perafita, concelho de Matosinhos).








sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Viajar ou envelhecer? Vitorino Nemésio

- Estás velha, hem?...
- Velha, não [Margarida tinha 20 anos]; mas enfim... o tempo não passa só para quem viajou muito como o tio. Quem me dera!...
- Viajar ou envelhecer?
- Talvez as duas coisas...
Sentiu sede de se abrir toda ao tio, explicar aqueles dois pontos que ele isolara tão bem a rasto da recordação do seu dia de anos no Pico; mas não achou palavras sensatas, ou pelo menos capazes de serem ditas ali de selim a selim, nos campos tão bonitos. As culturas começavam a cobrir-se das primeiras flores singelas; os olhinhos das árvores abotoavam discretamente. O verde-negro dos pastos, o verde dos Açores, quente e húmido, emborralhava-se até longe. Os cavalos seguiam de cabeça comprida, fazendo vibrar de vez em quando as ventas.
... Envelhecer não seria; mas deixar passar um grande espaço de tempo, como um troço de filme em branco, fechar os olhos ao peso daquela doçura da volta, tapar os ouvidos como quem teve um mau dia e chorar ao meter-se na cama moída, gasta... Na manhã seguinte acordar, mas passados uns anos, longe do Faial, ou noutro Faial só com o caminho à roda, o Pico em frente... gaivotas... sem ninguém.
O tio tinha dito: " viajar ou envelhecer?" Margarida gastara a resposta naquele silêncio e os olhos nas orelhas do cavalo.

Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal. 3a edição. Lisboa, Leya, 2013, p. 116-117.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Evocação de Raul Brandão. Com Aquilino Ribeiro (II)

ASCENDENTES CARNAIS E PSÌQUICOS

Raul Brandão nasceu à beira-mar, Foz do Douro, naquela parte da costa onde as vagas dificilmente consentem molhe. É possível que o seu ar contemplativo ou ausente, que me lembrava o dum cormoran solitário empoleirado em cima dum recife, lhe venha daí, do sentimento nato da imensidade.
Ali viveu os tenros anos, compenetrando-se, como dum fluido, do infinito que o mar exala das suas vozes, das suas cóleras, de suas perspectivas ilimitadas e até da imprevisível gama das suas tintas. Suponho que o meio seja agente primordial na formação dum temperamento. Os cobaltos cheios de nuances que rebrilham à tona das águas marinhas, as anilinas voláteis que escorrem do céu, verteu-os para os Pescadores em tintas tão vivas que, lendo-o, nos sentimos nas falésias diante da espacidão oceânica. O panorama humano da borda de água não devia impressionar menos a sua alma infantil. Os dramas do embarcadiço, desde o remador da companha ao grumete do navio a vapor, do pescador ao emigrante, conheceu-os ali nas suas modalidades. De forma que o seu impressionismo atlântico bebeu-o com o leite, pode dizer-se. E é por isso mesmo que ninguém lhe preleva quanto a debuxar um pôr do sol com dois toques de pena, na descrição das fainas de bordo ou a fazer a incisão rápida duma máscara de marítimo.
Rapazinho, levaram-no os Pais para o Porto onde, aluno do colégio de S. Carlos, fez o liceu, agregado ao tempo de disciplinas livres e não o encadeado e cíclico albardamento de cadeiras que fazem dos portugueses de hoje burros encartados. Frequentava mais tarde o Curso Superior de Letras quando foi publicada uma reforma do exército que criava o serviço militar obrigatório.
Li não sei onde que o pior flagelo trazido na envolta das guerras napoleónicas não foi o assolamento de meia Europa, o holocausto de milhões de vidas na pira da glória, foi o chamado imposto de sangue. Instituição tão peregrina tivemos também que introduzi-la sem o quê não seríamos gente. Ficámos mavórticos como o restante mundo, quando parecia à primeira vista que o facto da nossa debilidade, inerente à nossa pequenez, nos devia preservar da custosa nobilitação.
Temos Raul Brandão cadete para comprazer com os pais, mormente com a mãe, pela qual manifestou sempre uma ternura tão sentida como precatada. Ela gostava de ver o seu menino fardado, taful, cintadinho em correias de ante, pisgado pelas carochinhas das janelas, e compreende-se que o uniforme pelo facto de se não confundir com o desmanchado e comum trajo burguês crie distinção apreciável. A carreira militar não era porém a que mais quadrava ao temperamento de Raul Brandão. A arregimentação, só por si, constituía uma violência ao seu carácter altaneiro e independente. Muito menos a rigidez disciplinar convinha à sua índole melindrosa e aos fumos de liberdade que cedo lhe subiram à cabeça. Um dia, depois de ter feito manobrar uma companhia na parada, mandou-a destroçar com estas vozes sacrílegas de paisano:
- Façam favor de entrar em quartéis.
Reformou-se no posto de major, a patente mais novelesca da carreira, donde se pode partir para mil rumos, inclusive a aventura das belas-artes.
Raul Brandão refugiou-se nas letras, se é que não estava nelas desde o dia em que contava para os outros rapazes as lindas histórias dos caramujinhos. Compôs livros escolares, praticou o jornalismo, até que se acolheu à sua quinta da Nespereira em companhia dos autores predilectos, das árvores, que tratava com extremos reservados aos viventes das suas próximas relações, nunca se esquecendo todas as manhãs de lhes ir dar os bons-dias, inquirir das suas preciosas saúdes, ministrando-lhes, se havia mister, os cuidados e desvelos que se devem a enfermos e a amigos. Na Nespereira realizou, secundado por sua mulher, D. Angelina, a mais terna das esposas e a mais compreensiva das colaboradoras, a obra capital.
Seria delicado averiguar até que ponto vai nesta espécie de sonata executada a quatro mãos o papel da senhora. O seu nome subscreve, a par do nome glorioso do marido, o Portugal Pequenino. Nunca nos permitimos trocar com eles qualquer impressão no que respeita a este particular. Mas, pois que há obra a duo, ocorre-nos que na comandita dos irmãos Goncourt, Edmundo, o sobrevivente, delimitou quase no fim da vida com uma rectidão que se sente passar por cima de todos os sentimentos, ditada nada mais que pelo culto da verdade, o lote de cada um.
Foi na Nespereira, entre vigiar georgicamente a vinha, presidindo às operações essenciais, e a espreitar com olho enamorado, o olho dum rapaz perante a mulher querida, como as árvores mudavam de toilette, que escreveu e sonhou. Raul Brandão era um sonhador e a obra que deixou no céu, enquanto seguia com os olhos o velejar duma nuvem, o voo de uma andorinha ou as manobras bélicas dum milhafre pairando sobre as capoeiras, seria incomparavelmente maior e mais bela do que aquela que corre impressa nos seus livros.
Era religioso se por este vínculo se entende possuir-se alma amante e solidária com os seres e coisas do mundo. Nunca a palavra panteísno encontrou melhor aplicação do que neste homem de horizontes dilatados. O carinho que votava à natureza era imbuído de respeito e devoção filial. Tenho presente a descrição da árvore que floriu antes do tempo, enganada por uma Prrimavera dolosamente prematura, e noto que a sua emoção não seria maior se se tratasse da tragédia duma rapariga seduzida por um qualquer Lovelace. Nada lhe causava maior preocupação e portanto pena do que os seres que se não sabem defender. As árvores erguem-se em seus livros clamorosas de humanidade, digamos, tanto como a Candidinha e o Gebo.
A Nespereira foi o seu campo de Josafá. Da terra, ensopada pelas chuvas batentes dos invernos sem fim, levantavam-se os mortos, cansados do sono, e vinham ter com ele. Procuravam o lume sempre aceso do seu coração como se quisessem aquentar os membros enregelados. E as noites coalhavam-se-lhe de frus-frus sobrenaturais, suspiros, rezas, evocações, como num sabbat em surdina. Era esse universo sub-inferior, plantado para lá das fronteiras do conhecimento, que ele animava duma vida ruidosa e densa.A Casa do Alto era como os castelos na literatura de maravilha, governados por um génio poderoso, senhor duma varinha de condão, aos gestos da qual giravam e rodopiavam duendes, lémures e mais fauna das profundidades fantásticas. De lá expedia as suas mensagens para o além, a outra margem invisível da vida, desesperado e medroso. Ali meditou nos Novíssimos do homem, como lhe diria o confessor, se o tivesse.
Raul Brandão era homem lido e viajado. Na sua biblioteca encontrava-se de tudo, o bom e o mau, o bom porque era bom, o mau porque vinha na condição de joio de mistura com o grão, e ainda porque há mérito em conhecer os vícios da inteligência e as inferioridades do artesanato. Em conformidade, lia tudo, em especial a literatura russa, pela qual sentia manifesta simpatia, mais queda do temperamento que atitude do espírito. De certo Dostoiewski, Gorki, um tanto Tolstoi não deixaram de influir em seus etos, vincando-lhe o carácter. Aqui e além, numa ou noutra página, transparece a sugestão involuntária destes atlantes das letras.
   Compreende-se. Se alguma vez houve em arte auscultação séria do homem, praticaram-na os russos. A latinidade esgotou-se no jogo das formas e no ludíbrio dos conceitos. De todo esse movimento rectilíneo de superfície, desses caminhos luminosos da objectividade nada restava por devassar. O mundo aparente era chão varrido. Ficaram-lhe devolutas a vida de catacumba do eu e a noite, imenso campo de acção de almas e corpos. Foi para esse hemisfério que, na esteira dos eslavos, enveredou Brandão.

Aquilino Ribeiro, Camões, Camilo, Eça e Alguns Mais, Lisboa, Livraria Bertrand, 3ª ed., s.d., pp. 253-255.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Evocação de Raul Brandão. Com Aquilino Ribeiro (I)

UM HOMEM BENIGNO

Estou a vê-lo a subir o Chiado a passos lentos, dobrado e ficando ainda um homem alto, os olhos a azulejar em torno, um bom sorriso nos lábios, pronto a dar-se. Ia reunir-se à sua roda, na Livraria Bertrand ou no Café. Raul Brandão prezava o convívio dos amigos, por quem gostava de ser acarinhado, mas não provocava a blandícia. Com uma bonomia de velho capitão de porto, gozando os ócios e a reforma, sentava-se na Brasileira, geralmente ao fundo se havia lugar. O seu cristianismo era uma espécie de cancela franca, por onde passava cordialmente gente de toda a moral e condição, o rapaz de valor e o patarata, o patife e o honesto,o grego e o troiano. No âmago da consciência diferenciava como ninguém, e ia registando
À sua mesa quem pagava era invariavelmente ele, como se fosse não uma devoção, mas uma prerrogativa. Era o troco em miúdos à admiração e vénia que lhe tributavam. Não figurava também de senhor da Nespereira?
De modo geral prestava orelha deferente a cortesãos e estafadores. Era homem que sabia ouvir. Quando intervinha, fazia-o com pausa, entrecortadamente. Dir-se-ia que andava longe. Talvez andasse, sim, pelos cemitérios, pela noite escura a arrebanhar fantasmas que haviam de representar no seu guinhol, prodigiosamente evocador.
Quando falava, punha certo despacho na voz, sem o quê entaramelava-se-lhe a língua a meio da oração ou gaguejava, acabando tantas vezes, à maneira dum eco mofino, a retomar as sílabas terminais das palavras.
Como contava mais vinte anos do que eu, julgava-me obrigado a não corresponder  ao tratamento sem-cerimonioso ou antes desafectado que usava para comigo. Tratava-me por tu, eu tratava-o por senhor. Mas semelhante desconformidade não me inibia de pôr nas nossas relações a franqueza mais fraterna, por vezes destravada, consoante o humor. Lembro-me que uma vez, subindo a rua do Carmo, me perguntou à queima-roupa:
- Que tal achas o meu teatro?
- Pede-me a opinião leal?
Começou a gaguejar.
- Pede ou não pede?
- Dize lá...
-O seu teatro é uma borracheira.
Mas o homem de letras que escreveu El-rei Junot e Os Pescadores tem costas largas para carregar, sem dar tombo, com semelhante pacotilha.
Não era rancoroso, e eu permitia-me nos meus verdores ser impertinente com ele. Por vezes, e era injustiça,  punha-lhe na cabeça o carapuço  do seu próprio Gabiru. Ele ria, tolerantíssimo, duma tolerância filosófica sem despeitos nem reservas. Era integralmente um santo homem, convencido da fatuidade do bem e do mal, de quanto o esforço humano é vão, e de que tudo à superfície da terra, a começar pela ciência e a arte, é uma espuma falaz. No entanto, a sua posição, sob o ponto de vista de cidadania, era a de combatente duma barricada. Desde que o conheci, e foi durante uma década de anos, não dei conta que se arredasse do parapeito. Batia-se pelos desgraçados, pelos humildes, pelos triste, pelos que tinham fome e sede de sol, de simpatia ou de pão, simbolizados na mulher da esfrega, na Candidinha malfadada; batia-se e sofria pelos próprios maus, vítimas de uma sociedade iníqua e duma nefasta sina sem remissão. A sua gesta, no livro, na palestra, era a dum revoltado.
A obra de Raul Brandão é altivamente eloquente no que tem de social, por conseguinte de humano. A dor foi sempre o centro planetário da sua arte. Mas não a dor metafísica, pela qual se é fácil cavaleiro, mas a dor individuada, que nos torna solidários e responsáveis com o próximo. A par com esta feição toda evangélica, em literatura era um artista do impressionismo. Os Pescadores e Portugal pequenino são duas obras, irroradas de todas as tintas da Primavera e da candura da neve, do melhor que pode ostentar a língua.
Vinculados por amizade de camaradas, era livre entre nós a facécia. Quando se representou no Teatro do Politeama, na festa dos Vendedores de jornais, uma bluette sua, solicitaram-me para escrever a apresentação. Foram-lhe com a notícia. Acudiu todo lampeiro:
- Dou-te um pipo de vinho se disseres bem de mim...
- Nem que me desse um tonel, digo mal.
Leu-a Alves da Cunha, mestre da declamação, criador sem igual de tipos arrancados à realidade como os pedregulhos das minas que trazem consigo a ganga e forma cósmica dos penetrais.
"Se V. Ex.as, minhas senhoras e meus senhores, nunca ouviram uma gargalhada de Plauto, desintoxicadora, sã, visceral, vão ouvi-la dentro de pouco. Consubstancia-se na farsa ou sainete de mestre Raul Brandão, o escritor mais amargo que jamais viu a luz de Portugal, Zurbaran caldeado de Dostoiewski, e que constitui o número 2 do programa. Mais de um se dirá entretanto: pois quê, este homem ruço e de um esgalgado triste de choupo, de pupila desmesuradamente azul, azul como amostra do mar em que nasceu, que pinta e ama com a ternura do velho lobo marinho, este mágico que no Inverno passeia pela Cidade uma bengalinha de mestre-escola e na Primavera uma capa preta, majestosa, herdada de Hamlet ou do rei D. Afonso VI, é capaz de largar a sua sonora e jogralesca gargalhada?
Sim, senhores, este artista de génio que, à semelhança da serva de Deus de que reza Bernardes, se compraz a ver através do corpo das pessoas a sua conformação íntima, depois da carga de ossos o lodaçal psíquico, que anda desde o berço a sonhar com a Morte e há-de lográ-la, que lhes juro eu, como carpinteiro da historieta, a uma partida de chincalhão, sabe rir melhor que qualquer bom fabiano e, sobretudo, sabe fazer rir. Não há que estranhar. O riso fica paredes meias com a lágrima, alfa e ómega do ser e do porvir, pontos extremos por que se soldam os fusis do enigma na cadeia da vida. A satisfação abalisada, o epicurismo, o estou-me marimbando pertencem a um sector hediondo, sorte de cibório onde só medram cardos e urtigas.
Depois, eu lhes confesso à puridade, quando se colhe como Raul Brandão o vinho mais espiritual do Minho, este vinho que, ao sair do espicho, fica a cantar no cangirão o vira-virou e a caninha verde; quando se tem na estante as espécies mais raras do saber humano, desde Epicteto, numa edição quinhentista, a Barkmann, em estampa gótica castelhana, filósofos estes da reconfortação, nem custa a rir nem a chorar com as coisas infinitamente hilares ou deploravelmente  miserandas de que está coalhado o mundo.
A farsa que vão ter o regalo de ouvir não passa mesmo assim dum acidente na carreira do escritor. Aqui andou ele à superfície das almas, quando é condão seu descer às suas profundidades abissais pesquisando e esclarecendo. As sombras ele as condensa sob os feixes de pura radiação solar do seu espéculo. Raul Brandão é um desbravador de mistérios. A sua necrofilia traduz o afã com que experimenta devassar os arcanos para lá do mundo visível. Os mortos, com efeito, vêm sentar-se-lhe à lareira ou enchem-lhe o espaço nocturno do quarto de dormir com o seu murmurinho e a sua presença, embora não menos intrespassável à vista do que ao ferro. Ao mesmo tempo seu seio abarrota daquelas personalidades místicas que cada pessoa traz dentro de si, nele tumultuárias e eliseanas. Elas, os párias em que ninguém atenta e os seres que andam a rastos serão os figurantes centrais na obra deste escritor, dotado de uma sensibilidade de nórdico. Os vivos, em seu comum, tal como se apresentam e falam, são pouco na sua pena. A esses há-de atormentá-los primeiro, decompô-los em sua luz e treva, palpar-lhes a caveira, aspirar-lhes o fartum de cadáver, para que compartam dignamente da sua galeria. A arte de Raul Brandão é assim desintegradora e interrogativa.
Por exemplo: V. Ex.as conhecem o Gabiru, tal como caminha nas ruas e se movimenta na praça, na política, nas tramóias do amor...?! Se conhecem! Já uma vez o fizeram ir à esquadra; já lhe deram mesmo uns pontapés. Pois se o querem ver por dentro na sua relojoaria complexa e, embora amassado de argila divina, roubando o órfão, seduzindo a cachopa inocente, embarrilando o irmão, pregado numa prancha e catalogado como bestiola vulgar, folheiem o Húmus. Aí se lhes depara esta criação larvar em sua morfologia ampla e bem assim a Mulher da esfrega, alma a escorrer dó e miséria. É essa, a mais trágica de todas, que se ergue subitamente diante de nossos olhos a acusar. Quem? Tudo, os homens, Deus, os destinos. Do mesmo modo que estas duas personagens, todas as demais de Raul Brandão entram-nos para o coração e aí ficam a uivar, sangrando, convertidas em alcateia de espectros. O privilégio, raro, de exercer semelhante metamorfose explica a sua garra. Quando assim se modelam almas e se esculpem, como nos havemos nós de furtar ao preceito de rir ou chorar ante tão miguelangelescas estátuas? Compreende-se pois que um artista deste estofo tenha, por sua vez, quando lhe apetecer, o direito de rir às bandeiras despregadas, com propósito ou sem ele, irreverente ou ao desfastio, rir como Micrómegas ou como Júpiter Tonante, diante duma coisa patusca ou coisa austera, rir como os outros chorem, para lá dos horizontes abertos. Não lhes apresentei Raul Brandão: a tanto não chega o meu coturno. Disse-lhes apenas de que áscua provém a farsa que vão ouvir: O Doido e a Morte.'

 Aquilino Ribeiro, Camões, Camilo, Eça e Alguns Mais, Lisboa, Livraria Bertrand, 3ª ed., s. d.,pp. 248-250.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Evocação de Raul Brandão. Com Eugénio de Andrade





Há muito que tencionava fazê-lo – procurar os sinais físicos de Raul Brandão na Foz do Douro – e hoje [19 de Maio de 2013], pela manhã, aconteceu. Pedi ajuda a guia do Porto antigo, e percorremos demoradamente, nos dois sentidos, a rua Raul Brandão (outrora Rua da Bela Vista), entre o Passeio Alegre e a Cantareira. De facto, como notou Manuel Mendes, cujo texto me introduziu nesta visita e que no post anterior transcrevo parcialmente, a rua deve ter sofrido alterações profundas que modificaram tanto as estruturas confinantes com o prédio com o n.º 12 da Rua, como as da frente respectiva. Em todo o caso, a rua está hoje mais bem conservada do que em 1963, quando Manuel Mendes escreveu a sua crónica intitulada “Na Cantareira”.
Foi precisamente aqui, numa esplanada de um pequeno café popular, onde os clientes habituais se preparavam para antecipar a excitação do final deste Domingo, que nos sentamos para um café. O sol rompeu timidamente, atenuando os efeitos da nortada. E enquanto comentávamos o percurso já efectuado, não pude deixar de recordar outra figura literária que habitou no Passeio Alegre: Eugénio de Andrade.
Eugénio, que conheci e visitei nessa sua casa, hoje sede de uma Fundação que atravessa tempos atribulados, viveu a escassa distancia da casa onde Brandão nasceu, e que ele um dia foi, tomando o eléctrico, mostrar ao Miguelito. Muito mais do que uma proximidade topográfica uniu os dois escritores que se não poderiam ter conhecido. Um nexo de ressonâncias e imagens, de modos de sentir e de exprimir, liga as suas obras. Eugénio de Andrade não foi porventura o mais nobre discípulo literário de Brandão?
E enquanto discutíamos o sabor do café, e víamos passar os velhos habitantes do bairro entre os sulcos do eléctrico e as incursões dos pardais, eu recordava as frases do Eugénio, que poderiam ter sido assinadas também pelo Raul.

O Porto é só esta atenção empenhada em escutar os passos dos velhos, que a certas horas atravessam a rua para passarem os dias no café em frente, os olhos vazios, as lágrimas todas das crianças de S. Vítor correndo nos sulcos da sua melancolia.
O Porto é só a pequena praça onde há tantos anos aprendo metodicamente a ser árvore, aproximando-me assim da restolhada matinal dos pardais, esses velhacos que, por muito que se afastem, regressam sempre à minha vida.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

À procura de Raul Brandão. Com Manuel Mendes



E nas minhas visitas à Foz raro é que não vá à Cantareira, espreitar a casa em que nasceu Raul Brandão. Esse foi meu mestre e meu amigo o deslumbramento inesquecível da minha juventude de incipiente sonhador, que ele acalentou a um fogo ardente e magnifico.
É uma ruazinha estreita e sinuosa, à qual deram o nome do escritor. A pequena casa tem dois pisos, as janelas e as portas emolduradas de grossa cantaria de granito. Nunca sequer ali tentei entrar, porque não sei quem hoje lá mora, quem habita debaixo daquelas telhas, e temo que me confranja o que irei ver. [...] Noutro tempo, a casa devia estar sobranceira às árvores do Passeio Alegre e debruçada sobre o azul sem fim do mar, “diáfano ou colérico”, que foi, como ele algures o descreve, o quadro em que lhe desabrochou a vida.

Manuel Mendes, "Na Cantareira" (Abril de 1963). In Roteiro Sentimental: Douro (1.a edição 1964). Museu do Douro, 2002. p. 176.


sábado, 14 de setembro de 2013

Recém-chegado de uma longa viagem marítima. James Cowan

Consideremos um viajante intrépido com quem me encontrei recentemente. Ele veio ter comigo, recém-chegado de uma longa viagem marítima, ansioso por compartilharmos seus conhecimentos. Ainda tinha sal na barba. O homem mostrava sinais de estar dominado pelas lembranças de um acontecimento que mudara a sua vida. Falou-me sobre a sua viagem à Índia e como tinha chegado à planície através dos desfiladeiros de Pamir e de Kush. Era um mercador e tinha ido lá à procura de especiarias e pedras preciosas, mas deparara-se-lhe algo completamente diferente.
[...]
Imaginem como me senti quando ouvi o relato do meu visitante a respeito do encontro com as abelhas de Nizmuddin. Ali estava um homem que tinha presenciado o que acreditava ser um milagre. Sob um dos arcos tinha visto bandos de papagaios de cores brilhantes banqueteando-se com o mel filtrado pela própria pedra tumular. O zelador do túmulo tinha insistido na necessidade de se ter cuidado para não pisar alguma abelha extraviada, receando que as condições ideais que cercavam o túmulo do imperador fossem alteradas. Era como se o túmulo tivesse uma aura de santidade que o diferenciasse de outras edificações.
[...]
Foi só então que comecei a entender por que visitantes como ele andavam constantemente de um lugar para o outro, procurando sempre, esperando descobrir o que outros antes deles não tinham conseguido.

James Cowan, O Sonho do Cartógrafo. Meditações de Fra Mauro na Corte de Veneza do Século XVI. Lisboa, Temas e Debates, 2000, p. 39-40.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O comboio vem com um pequeno atraso de quatro horas. Santos Fernando

De repente, o infortúnio apanhou-me de surpresa num apeadeiro insólito, com duas malas repletas de saudades e outras peças íntimas. Uma velha locomotiva dormia talvez para sempre num troço e linha ferrugenta, sem beleza, sem poesia. 
Lembrei-me então da tal noite: (barcos varados na areia, bojos vermelhos adornados, como grandes barrigas atestadas. O chape-chape da água a cocegar o paredão, um paquete iluminado no meio do rio, a ponte de luzes, aquela suspensão de estrelas, e o nosso caminhar e o nosso sonho ao longo do cais...)
Um factor, com uma bela corneta de ouro a imitar lata, e uma lanterna preciosa, olhou para mim, e assim a modos de quem olha uma mercadoria que é imprescindível despachar em grande velocidade para casa do diabo.
- O comboio vem com um pequeno atraso de quatro horas.
Não se agradecem notícias destas. Abri uma das malas, tirei o colchão pneumático de praia, soprei-o e deitei-me tranquilamente. Depois acendi um desses cigarros que são exclusivamente filtro e fiquei de papo para o ar, pensando que entre a terra e o céu se passam coisas maravilhosas (a recordar que no topo do outro cais se mantinha uma luz acesa. Uma luz amarela numa casa que não se via. Recortada, a silhueta de um homem curvado, a comer. A seguir, o homem levantou-se e foi pôr o prato não sei aonde. Nesse instante destacou-se uma figura de mulher. Um quadro amarelo de Gaughin. Tudo tão simples e tão grandioso no meio de uma escuridão feita de noite e de rio).

Santos Fernando, "Fantasia em colchão pneumático", in Os Grilos Não Cantam ao Domingo. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1969, p. 177-178.


segunda-feira, 9 de setembro de 2013