domingo, 31 de março de 2013

Certidão de nascimento de Macau (1) Fernão Mendes Pinto

Cópia de uma carta do Irmão Fernão Mendes que escreveu de Macau ao Reitor do Colégio de Goa a 20 de Novembro de 1555.

A graça e o amor de Cristo Nosso Senhor e redentor seja sempre com V. R. e com todos os caríssimos irmãos, amen. — Por o tempo me não dar lugar lhe não escrevo tão largo como desejava para lhe dar conta de toda nossa viagem e sucesso dela, e o quanto trabalho temos passado depois que de V. R. nos apartámos. Mas porque hoje cheguei de Lampacau, que é o porto onde estamos, a este Macau, que é outras seis léguas mais avante, onde achei o Padre Mestre Belchior, que de Cantão aqui veio ter, onde era ido havia vinte e cinco dias a resgatar Mateus de Brito, que é um homem fidalgo, e outro homem, os quais estavam presos no tronco da cidade havia seis anos”, “os quais custaram mil taéis, que são mil e quinhentos cruzados, e assim a ver a cidade, a maneira da gente e terra, e trabalhar para ver se podia lá deixar o Irmão Luís Fróis, para aprender a língua, para se em algum tempo fosse necessário, parecendo-lhe que a terra fosse para se nela poder fazer em algum tempo fruto, a qual não achou como lhe pareceu, senão da maneira que ele lá escreve a V. R., por que me parece que não há maior engano que cuidar ninguém que em algum tempo naturalmente possa haver alguns Cristãos Chins senão se Deus fizer outros de novo, porque estes que ao presente há na terra é por demais falar nisso. E, como digo, me falta tempo para disto como dos mais trabalhos, riscos, medos, que até agora temos passado, principalmente em informar V. R. e também para estar de “caminho para logo me embarcar para Cantão com o Irmão sacristão, a buscar muitas coisas que o padre Baltazar Gago manda pedir de Japão, que cá se acharam e lá não as há, que são muito necessárias”

Fernão Mendes Pinto. “Carta II", 1555.
Peregrinação, seguida das suas cartas. Versão integral em português moderno por Adolfo Casais Monteiro. Edição da Sociedade de Intercâmbio Cultural Luso-Brasileiro e da Livraria Casa do Estudante Brasileiro, S/d.

Macau, 30 de Março de 2013


sábado, 30 de março de 2013

"Viagens comadres do pensamento". Alain de Botton

As viagens são as comadres do pensamento. Poucos lugares induzem mais intensamente à conversa interior que um avião, um barco ou um comboio em andamento. Entre aquilo que temos diante dos nossos olhos e os pensamentos que nos podem passar pela cabeça, estabelece-se uma relação peculiar, fazendo, por vezes, com que os grandes pensamentos reclamem grandes vistas, e os pensamentos novos, novos lugares. 

Alain de Botton, A Arte de Viajar. 3a edição. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2008. P. 62.

sexta-feira, 29 de março de 2013

"Viajar? Para viajar basta existir". Bernardo Soares

Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.
«Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo.» Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?
A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. p. 387.

quinta-feira, 28 de março de 2013

"Construímos um jardim de jogos insólitos". Carlos Fuentes

A nossa presença no mundo é inseparável de um sentimento de ausência. O facto de nos encontramos no mundo implica, desde a infância, uma questão: que é que me falta? que é que falta ao mundo onde eu, ser inacabado, vivo? Longe de nos contentarmos com o que existe, construímos um jardim de jogos insólitos povoado de fantasmas: o fantasma do que não é, do que foi, do que devia ser. Hölderlin fala de "perturbação e pânico" a propósito desta relação de um ser que deseja, que, sabendo-se parte integrante da natureza e ao mesmo tempo dela separado, aspira a uma união que não é possível - estremo  e doloroso paradoxo - senão pelo preço de uma separação infinita.
Insatisfeitos com o mundo, ansiosos de lhe juntar algo que lhe falta, celebram o jogo do mundo: assim são as crianças e os escritores, os loucos e os artistas.

Carlos Fuentes
Gérard Montassier (ed.), Le Fait Culturel. Paris, Fayard. P. 281.

quarta-feira, 27 de março de 2013

"Distrair ao longo do caminho". Xavier de Maistre

As paredes do meu quarto estão decoradas com estampas e quadros que as embelezam extraordinariamente. Gostaria, do fundo do coração, de mostrá-los um a um ao leitor, para o recrear e distrair ao longo caminho que ainda temos de percorrer até chegar à minha secretária; é tão impossível explicar um quadro com clareza como fazer um retrato parecido através de uma descrição.

Xavier de Maistre, Viagem à Roda do Meu Quarto. Lisboa, & Etc, 2002. p. 57.

"Tu derretes-me todas as ideias". Virgílio Ferreira

10 de Outubro [1944]

Meu diário! Há quanto tempo eu te abandonei! Mas tu sabes lá que voltas eu não tenho dado desde que te deixei! Viagens, viagens, fui de Melo [concelho de Gouveia] a Coimbra, de Coimbra à Figueira, da Figueira ao Porto, do Porto a Bragança... Espera que já continuamos. É preciso que eu diga o que é Bragança e por que razão eu vim cá parar. Mas... eu estou a falar contigo e devo falar com a Gina [Regina Kasprezykowski] que é minha namorada, minha noiva, minha futura mulher. Tu ouve que ainda é a melhor forma de falar entre os tolos.
Minha Gina!
De Bragança voltei ao Porto, do Porto a Lisboa e em Lisboa estive contigo... Aqui paro. Tu derretes-me todas as ideias, e diante de ti fico apenas assim mesmo: - derretido. Não te importes com isso. Eu serei para os outros aquilo que me torna viável entre eles, mas para ti eu quero ser apenas o amoroso em contemplação.
Estive em Lisboa contido, Ginita, contigo. E tão pouco tempo estive que eu não pude ser a razão completa por que gostas de mim. É na intimidade que nós somos o que os outros não toleram que sejamos. Por isso, quando uma pessoa íntima se põe de fora, repele-nos, não gosta de nós. Por isso só nos ama verdadeiramente quem nos ama no que somos na intimidade. Ardo em desejo de saber qual o teu sentir agora que repassas pela lembrança a nossa breve estadia em Lisboa. Sei bem que é um erro não nos projectarmos num momento o que somos numa vida; mas eu quis ser-te o que sou especialmente para ti. E não me importa o resto.
Estou de novo em Bragança. Como tudo isto é arcaico! Os colegas são velhos, gordos ou secos, coxos, com tiques como o clássico professor de liceu. Tudo velho, tudo passado. Uma praçazinha aldeã, casas negras, ruas tortuosas. E sempre um ar recolhido de monge na montanha. Onde fica o Algarve brilhante de casas brancas? Onde fica a Lisboa febril, eléctricos, automóveis, buzinas, cartazes luminosos e gentes gente? Onde estás tu, minha Gina?
Estou triste porque me sinto bem dentro de mim. Eu quero sair deste ermo, estou farto de pedregulhos, quero ir-me embora! Talvez ao menos, assim, eu seja um artista... O artista é o indivíduo que se julga só no mundo. Será decerto por isso que os outros o utilizam apenas como adorno, tal como um penduricalho de ouro. Muito bonito, muito valioso, mas penduricalho...
Onde estás tu, minha Gina?

Virgilio Ferreira, Diário Inédito 1944-1949. Lisboa, Bertrand, 2008. P. 47-48.

segunda-feira, 25 de março de 2013

"O Privilégio dos Caminhos". Nadir Afonso


Nadir Afonso, O Privilégio dos Caminhos

domingo, 24 de março de 2013

Heraklion. 22 de Fevereiro de 2006

Porto e cidade. Na viagem de regresso de Timor.






Comitiva do C-130 que efectuou a visita a Timor em Fevereiro de 2006 (jornalistas portugueses)



Heraklion. 16 de Fevereiro de 2006

Aeroporto. Escala a caminho de Timor Lorosae.

"A procura do viajante". Sofocles

Coro

Ao que a noite estrelada, no seu termo
gera e embala, incendiando, 
ao Sol, ao Sol suplico
que isto anuncie:
onde, onde se encontra
o filho de Alcmena. Oh, tu, que com fulgor
brilhante resplandeces, diz-me
se nos pônticos estreitos
ou apoiado nos dois continentes. Diz-me,
tu que tens o olhar mais potente.

Em seu aflito coração vejo
Quénia disputada Dejanira,
qual pobre pássaro,
nunca adormece a angústia
das pálpebras já sem lágrimas, mas
alimentando o receio
com a demora, pela lembrança
constante do marido, se consome
sem esposo no ansioso leito,
funesto destino esperando, infeliz.
Do mesmo modo que muitas são
as ondas que no vasto mar
podem ver-se, indo e vindo, arrastadas
pelo infatigável Noto ou pelo Bóreas
assim ao descendente de Cadmo
voltam e aumentam
as fadigas da vida, qual pélago
cretense. Mas algum deus
se afasta certamente, sem se perder,
da mansão de Hades.

As estas tuas amáveis queixas
contrárias coisas trarei.
Digo-te que não deves
esgotar a esperança
favorável, pois o rei
que tudo ordena, o Crónida,
aos mortais não reserva
Um destino sem dor.
Mas antes, ora a pena,
ora o prazer, pois todos
dão voltas como os caminhos
circular da Ursa.

Sofocles, "A procura do viajante". Antologia da Poesia Grega Clássica. Tradução e notas complementares de Albano Martins. Lisboa, Portugalia Editora, 2009. P. 260-261. 

sábado, 23 de março de 2013

"Los tres viajeros aéreos favoritos". John Francis Rigaud

John Francis Rigaud; Los tres viajeros aéreos favoritos. Ca1785


"El artista repitió varias veces la presente pintura, que describe en una barquilla de globo aerostático con la bandera inglesa a Laetitia Ann Sage, la primera mujer británica que subió en globo, despidiéndose de los que quedan en tierra; detrás, el artillero George Biggin y el aeronauta italiano Vicente Lunardi. De este gracioso óvalo existe una estampa de Bartolozzi.La ascensión se verificó en 1785 y duró una hora, cayendo el globo en Harrow. Lunardi hizo más tarde una célebre ascensión en Madrid el 12 de agosto de 1792."
Museo del Prado

sexta-feira, 22 de março de 2013

"Nunca se muda de vida". Albert Camus

Pouco depois, o patrão mandou-me chamar e fiquei aborrecido porque pensei que me ia dizer para telefonar menos e trabalhar mais. Não era nada disso. Declarou que me ia falar num projecto ainda muito vago. Queria apenas a minha opinião sobre o assunto. Tencionava instalar um escritório em Paris, para tratar directamente com grandes companhias e perguntou-me se eu estava disposto a ir para lá. Poderia assim viver em Paris e viajar durante parte do ano. "Você ainda é novo e creio que essa vida lhe agradaria".  Disse que sim, mas que no fundo me era indiferente. Perguntou-me depois se eu não gostaria de uma mudança de vida. Respondi que nunca se muda de vida, que em todo os casos, todas as vidas se equivaliam e que a minha, aqui, não me desagradava. Mostrou um ar descontente, disse que eu respondia sempre à margem das questões, e que não tinha ambição, o que para os negócios era desastroso. Voltei para o meu trabalho. Teria preferido não o descontentar, mas não via razão nenhuma para modificar a minha vida. Pensando bem, não era infeliz. Quando era estudante, alimentara muitas ambições desse género. Mas quando abandonei os estudos, compreendi muito depressa que essas coisas não tinham verdadeira importância.

Albert Camus, O Estrangeiro. Lisboa, Livros do Brasil, s/d. p. 75-76.

quarta-feira, 20 de março de 2013

"Civilizada aventura". Thomas Mann

O escritor Thomas Mann viajou uma dezena de vezes para os Estados Unidos da América, entre 1934 e 1951. Oito dessas travessias foram feitas de barco, duas de avião (a que se poderão acrescentar duas viagens de regresso também de avião, a que correspondem idas de barco).
A primeira viagem teve partida a 19 de Maio de 1934, de Bolonha para Nova Iorque, e regresso a 9 de Maio, de Nova Iorque para Roterdão. Mann tinha então 59 anos e foi acompanhado pela mulher, Katia.
Dessa sua primeira viagem transatlântica, no vapor holandês Volendam, deixou um diário de bordo, publicado com o titulo Viagem Marítima com Dom Quixote, em 1934. A tradução portuguesa é de 2008.

19 de Maio de 34
Pensámos que, para já, nos apetecia tomar um vermute no bar, e é o que estamos a fazer neste momento, na silenciosa expectativa da partida. Retirei da mala de mão este caderno e um dos quatro volumes cor de laranja encadernados em linho do Dom Quixote que me acompanha; quanto ao desfazer das malas restantes, não há qualquer pressa. Afinal temos perante nós nove a dez dias até sairmos na terra dos antípodas; voltará a ser sábado e domingo, como amanhã, e ainda segunda-feira e terça, até que termine esta civilizada aventura - mais depressa não o consegue o pachorrento holandês, cujas tábuas há pouco pisámos.

Thomas Mann, Viagem Marítima com Dom Quixote. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2008.

"Viagem". Cristovam Pavia

Viagem

Arquipélagos de cinza
Vistos ao luar,
Na escuridão do meu quarto
Onde não há luar algum.
Arquipélagos de cinza
Que eu ire abordar
Na escuridão do meu quarto,
Quando vier o sono
Devagar...

Cristovam Pavia, Poesia. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2010. p. 65

terça-feira, 19 de março de 2013

"Saí do comboio". Álvaro de Campos

Saí do comboio,
Disse adeus ao companheiro de viagem
Tínhamos estado dezoito horas juntos..
A conversa agradável
A fraternidade da viagem.
Tive pena de sair do comboio, de o deixar.
Amigo casual cujo nome nunca soube.
Meus olhos, senti-os, marejaram-se de lágrimas...
Toda despedida é uma morte...
Sim toda despedida é uma morte.
Nós no comboio a que chamamos a vida
Somos todos casuais uns para os outros,
E temos todos pena quando por fim desembarcamos.
Tudo que é humano me comove porque sou homem.
Tudo me comove porque tenho,
Não uma semelhança com ideias ou doutrinas,
Mas a vasta fraternidade com a humanidade verdadeira.
A criada que saiu com pena
A chorar de saudade
Da casa onde a não tratavam muito bem...
Tudo isso é no meu coração a morte e a tristeza do mundo.
Tudo isso vive, porque morre, dentro do meu coração.
E o meu coração é um pouco maior que o universo inteiro.

Álvaro de Campos, Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. P. 187.

segunda-feira, 18 de março de 2013

domingo, 17 de março de 2013

"O barco vai de saída". Fausto

Desembarque de Colombo. J. M. W. Turner


Joseph Mallord William Turner, The Landing of Columbus, for Rogers's 'Poems'. Ca 1831-2
Tate Gallery collection.

sábado, 16 de março de 2013

"A cidade feliz". Jorge de Sena

A cidade feliz

Não sei porque não falam disto.
Será porque falar ameaça no hálito tão ténue
a flor lindíssima que o menor sopro mata?
Falando todavia, tudo se suspende;
E que não existe para sempre mesmo depois das palavras?


Cidade ensolarada, fumegante a meus pés:
telhados, vozes, pombas, trepadeiras...
De longe se não vê que toda a gente luta,
se devora e desvairadamente contempla
que a sua flor, lindíssima, resista.

Como, poesia, quando suspenso o tempo,
se cadencia em passos de palavras,
Quando a memória, a angústia, a esperança, a própria vida,
se ordenam em cortejo e vêm passando em frente
do olhar que as bebe, de um tremor, de um pranto,
como não dizes também da flor que defendemos?
Será que não é difícil, que não é esquiva,
uma flor que um gesto, o mesmo amor destrói?

Ah fidelidade, coisa humilde, coisa que não basta,
coisa que não vive, como te chamo flor?
O Sol e o ar sobre a cidade passam.
Do alto as pombas na cidade pousam.
Como te chamo flor?
Como até nisto eu posso atraiçoar-te?

Jorge de Sena

sexta-feira, 15 de março de 2013

O viajante entusiasta. Hoffmann


O viajante entusiasta, que nos comunica esta fantasia à maneira de Callot, extraída do seu Diário, distingue tão pouco a sua vida imaginária da sua vida positiva, que quase não conseguimos perceber o limite que as separa. Mas, leitor benévolo, tal limite está longe de surgir mais bem definido no teu espírito; pode acontecer que, introduzido pelo autor visionário nas esferas fantásticas da magia, tu vejas inopinadamente milhares de figuras estranhas a imiscuírem-se na tua existência real, tratando-te com a intimidade de velhos conhecidos. Queiras tu acolhê-las como tais e aceitar os seus modos bizarros, sem te irritares excessivamente com os pequenos incómodos que o seu sem-cerimónias possa gerar. Peço-to do fundo do coração.

"Les aventures de la nuit de la Saint-Sylveste. Avant-propos de l'éditeur".
Hoffmann, Contes. Fantasies à la manière de Callot. Tirées du Journal d'un voyageur enthousiaste. 1808-1815. Paris, Gallimard, 2009. P. 368.

Brueghel, o Velho. Grupo de viajantes


Autor: Brueghel "el Viejo", Jan
Título: Recua y gitanos en un bosque.
Museo del Prado
"Un grupo de viajeros hace un alto, sentados junto al camino. Uno de ellos aborda a un arriero que encabeza una caravana de mulas cargadas. En la zona izquierda se desarrolla un amplísimo paisaje."

"Sair de si próprio". Milan Kundera

O nascimento do romance europeu coincide com a decomposição do mundo medieval "afeiçoado segundo uma só ideia", organizado segundo uma só fé. O Deus de Pascal deixou a terra; a sua verdade, única e clara, escondeu-se. Don Quixote saiu de sua casa e não consegue reconhecer o mundo, subitamente opaco, contraditório e relativizado.
A partir desse momento, a sabedoria deixa de consistir na apropriação de uma verdade pré-existente e dada, mas na faculdade de perceber a complexidade das verdades relativas que se confrontam no vasto espaço do mundo onde já não existe juiz supremo.
Esta descoberta da relatividade é uma grandiosa descoberta do pensamento ocidental. O romance faz parte desta descoberta, confirma-a e desenvolve-a. Assenta neste novo estádio do mundo (do mundo relativizado sem o juiz supremo) e é a sua imagem.
O jogo romanesco consiste na criação de personagens; é um convite perpétuo a sair de si próprio (da sua própria verdade e da sua certeza) e de compreender o outro. O romance é assim um grande apelo à tolerância, um exercício imaginário de compreensão.

Milan Kundera, in Gérard Montassier (Coord.). Le Fait Culturel. Paris. Fayard, 1980. p. 268


quinta-feira, 14 de março de 2013

Contadores de histórias. Walter Benjamin


"Quando se viaja, há sempre alguma história para contar" - diz a vox populi, com a ideia de que o contador de histórias é alguém que vem de longe. Mas não devemos ignorar aqueles que, ganhando honestamente o seu pão, ficaram no país e conhecem as suas histórias e tradições. Se quisermos figurar estes dois grupos por intermédio dos seus representantes arcaicos, diremos que um é incarnado pelo camponês sedentário e outro pelo marinheiro comerciante.

Walter Benjamin, Le Raconteur, in Nikolai Leskov, Le Voyageur Enchanté, précedé de Le Raconteur de Walter Benjamin. Paris, Payot et Rivages, 2011. p. 13-14.

Matisse. Estudo para "Luxe, calme et volupté". 1904

O último verso de "Invitation au voyage" interpretado pelo jovem Matisse. O estudo pertence à colecção do Moma.

"Voyage by Baudelaire". Sir Sidney Nolan

Sir Sidney Nolan, Illustration to the 'Voyage by Beaudelaire'. 1965.
O original integra a colecção da Tate Gallery.

"Invitation au voyage". Charles Beaudelaire

 Invitation au voyage

Mon enfant, ma soeur,
Songe à la douceur
D'aller là-bas vivre ensemble
Aimer à loisir,
Aimer et mourir
Au pays qui te ressemble!
Les soleils mouillés
De ces ciels-brouillés
Pour mon esprit ont les charmes
Si mystérieux
De tes traîtres yeux,
Brillant à travers leurs larmes.

Lá, tout n'est qu'ordre et beauté,
Luxe, calme et volupté.

Vois sur ces canaux
Dormir ces vaisseaux
Don't l'humeur est vagabonde;
C'est pour assouvir
Ton moindre désir
Qu'ils viennent du bout du monde.

Les soleils couchants
Revêtent les champs
Les canaux, la ville entière.

D'hyacinthe et d'or;
Le monde s'endort
Dans une chaude lumière!
Là, tout n'est qu'ordre et beauté,
Luxe, calme et volupté!


Convite à viagem

Minha pequena, minha irmã,
Pensa na doçura
De vivermos juntos lá longe
Amar sem pressa,
Amar e morrer
Na terra que se te assemelha!
Os sóis inundados
Por estes céus enevoados
Têm para o meu espírito os encantos
Tão misteriosos
Dos teus olhos traiçoeiros,
Brilhando através das suas lágrimas.

Lá, tudo é ordem e beleza,
Luxo, calma e volúpia!

Vê nestes canais
Estas embarcações repousando
Cuja vontade é vaguear,
É para satisfazer
O teu menor desejo
Que eles vêm do fim do mundo.

Os ocasos
Cobrem os campos
Os canais, toda a cidade.

De jacinto e de ouro;
O mundo adormece
Numa quente luminosidade!
Lá, tudo é ordem e beleza,
Luxo, calma e volúpia.

"Voyage Magnifique". Maria João Pires. Schubert

terça-feira, 12 de março de 2013

"Escrito num livro abandonado em viagem"

Escrito num livro abandonado em viagem

Venho dos lados de Beja.
Vou para o meio de Lisboa.
Não trago nada e não acharei nada.
Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,
E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro.
Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:
Fui como ervas, e não me arrancaram.

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). P - 260.
1ª publ. in Presença, nº10. Coimbra: Mar. 1928.


segunda-feira, 11 de março de 2013

“Paris é uma obra de arte”


A crónica de hoje bem podia intitular-se “As cidades americanas de Fernando Távora”. Do programa evocativo do professor e arquitecto Fernando Távora que Guimarães 2012 acolheu, constava uma exposição sobre a sua obra e a edição facsimilada do Diário de “Bordo”, o relato circunstanciado e vivo, com recurso à escrita e ao desenho, de uma visita de estudo efectuada em 1960. Iniciou-se a 13 de Fevereiro esta grande viagem, que percorreria diversas cidades dos Estados Unidos, a cidade do México, Tóquio, Banguecoque e Karashi, Beirute e Balbeque, Cairo e Atenas, regressando a Lisboa a 12 de Junho.
Távora tinha então 36 anos, leccionava na Escola Superior de Belas Artes do Porto, trabalhava para a Câmara Municipal e em projectos de atelier. Esta viagem como escreveu José António Bandeirinha, o comissário da exposição “Fernando Távora: a Modernidade Permanente” tornou-se “um verdadeiro périplo de encontros culturais e de reversos reencontros com a sua própria identidade matricial”. O Diário testemunha o confronto em que o arquitecto se acha envolvido, colocando sob a perspectiva crítica das suas origens portuguesas e europeias a forma de viver e de representar do Novo Mundo.
Leia-se, por exemplo, a descrição que faz de uma visita ao Empire State Building, que realizou a 6 de Março, advertindo que o faz “para ver a paisagem”
"A paisagem urbana é surpreendente. Os edifícios de 20 andares - o Chrysler Building, o Secretariado das Nações Unidas, o Rockfeller Center, o Wall Street -  tudo fica a nossos pés como um gato aninhado à lareira. Ao longe os aeródromos, a estátua da Liberdade, os rios, as pontes, as high e expressways, o Central Park e os suburbs. É difícil imaginar uma tão intensa humanização da paisagem e com que domínio sobre a natureza e com que esforço e dispêndio. Não me perguntem se acho bonito ou feio, estive duas horas lá em cima a pensar nisso e não cheguei a qualquer conclusão. Há apenas uma verdade evidente: é "quantitativamente" a maior empresa de todos os tempos. (Em determinada altura pensei que talvez fosse mais bonita a vista de Santa Luzia sobre Viana, a foz do rio e o mar. É seguramente mais tranquila, mas a vista de Nova Iorque a partir do Empire State Building é extraordinariamente "exciting". A comparação é estúpida mas eu estou tão enraizado nas minhas coisas que me atrevi a fazê-lo. Oh, as saudades da família e aqueles domingos em Santa Luzia! O que nós poderíamos fazer em Portugal!)
Este contraponto sentimental entre Santa Luzia e o Empire State é, no mínimo, surpreendente. Num dos arquitectos mais informados e cultos da segunda metade do século XX, a confissão quase irónica exprime o abismo das escalas e de tempo que separa a cidade europeia, e de forma vincada a portuguesa, da cidade americana.
De todas as cidades americanas onde se deteve, tanto da costa oeste como da costa leste, Nova Iorque foi apesar de tudo aquela com que criou mais empatia. Vindo de Filadélfia, entrou em Nova Iorque a 28 de Fevereiro. O que mais o impressiona de imediato é o movimento. Era um domingo ao principio da noite. "Não havia praticamente uma luz estável; tudo mexia como pirilampos em noite quente de verão (é uma noção impressionantemente nova, esta do movimento, de uma sociedade em permanente movimento - o movimento em todas as escalas de espaço e tempo)."
Não esconde a sua decepção com Washington, por onde iniciou o seu périplo americano: "Washington é uma bela cidade a duas dimensões, isto é na planta. A sua terceira dimensão, porém, é o caos. Dir-se-ia que tudo foi bombardeado e que a cidade foi reconstruída em estado de emergência, tendo-se conservado alguns prédios antigos. Vale a pena visitar esta cidade para compreender como Paris é, na realidade, uma obra de arte."
Uma semana mais tarde, a 21 de Fevereiro, a sua apreciação sobre a capital dos Estados Unidos parece ser menos áspera. "Devo dizer que Washington tem possibilidades de ser uma magnifica cidade porque o seu arranjo central tem muito da garra europeia (ítalo-francesa) de compor cidades. O problema foi o de construir uma cidade capital de uma federação campeã da democracia, segundo um esquema "l'état c'est moi". O que em Washington é realizado pelo Governo será discutível mas tem certa qualidade. O que é realizado pelo "americano" não corresponde ou não contribui para a valorização da cidade. O sentido "cívico" de cidade não o encontrei em Washington (embora me dissessem que os habitantes são muito "proud" da sua cidade."
Disse um dia Álvaro Siza que as cidades precisam de tempo, conceito em que certamente soma a sua própria experiencia ao seu longo e próximo contacto com Fernando Távora. É sem dúvida a falta de tempo, de experiencia acumulada, de construção, desconstrução e reconstrução, de múltiplas e sucessivas intervenções que corrigem e põem em dialogo o presente com o passado  que o repele na cidade americana. Como bem se depreende dos comentários que deixa a propósito de uma visita ao Metropolitan Museum: “"Estes museus americanos irritam-me um pouco por saber que esta gente tem aqui estas coisas magníficas apenas porque teve dinheiro para as comprar".[...] A beleza aqui está toda guardada e foi toda comprada aos outros. Os Estados Unidos tiveram a pouca sorte de surgirem no mundo numa altura desgraçada e são talvez os melhores representantes da nossa decadência, até porque não têm determinados pruridos e complexos que os outros povos possuem devido ao seu passado. Realizou-se aqui, talvez, o sonho grande da humanidade contemporânea: viver materialmente bem e (julga-se) todo o resto virá por acréscimo.
Não sei se me explico, nem sei se penso bem. Eu sou um triste rural europeu com ideias ultrapassadas."

Uma versão mais curta deste texto foi publicado no semanário Região de Leiria, a 7 de Março de 2013.

"Como se fosse um poema de amor"

Como se fosse um poema de amor
(Lisboa, 1969)

Esta cidade tem hoje o seu rosto
e as gaivotas viam na orla dos teus olhos,
sob as nuvens cinzentas de tua fronte.
Ramos verdes de Abril agitam-se em teus lábios
e entre os teus dedos, brancas, surgem, surgem cúpulas e torres.
Um castelo de sombras ergue-se em teu peito
e um avião passa lento, percorrendo o teu cabelo.
História do teu corpo com ruas e com rostos,
recantos de cansaço, paredes coloridas,
luz que vem e pára, atónita, a teus pés,
como um cão adormecido cujo nome ignoramos.
Esta cidade terá o teu rosto para sempre
e em sua cálida extensão conhecida,
pele a pela, até aos ossos, pedra a pedra mos anos,
o amor terá distância e viverá sua morte.
Subitamente não há passado em tua língua
e em tua língua desmorona-se o presente
e tua língua arde e sua saliva queima
enquanto o rio enorme desagua
levando sob suas águas nossas vozes.
Esta cidade terá ontem nome para sempre,
escrevi como se fosse verdade,
como se as minhas palavras fossem de pedra ou aço,
como se nada tivesse jamais de desmenti-las.
Numa noite qualquer, numa morna manhã
de uma primavera chuvoso e de tormentas,
com cinismo e cansaço, mas também um momento
com aquela ilusão que tiveram outrora
e um calor vencido que alimenta ainda sua pele,
frente ao esquecimento dois seres abraçaram a vida.
Com tristeza mais suave, oh que melancolia,
junto ao húmido parque suas duas sombras tremeram
"esta cidade terá ontem nome para sempre"
e ouviram-se distantes anunciar seu adeus.

Juan Luis Panero
Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea. Selecção e notas de José Bento. P. 786.

“Antes das cidades já havia pessoas?"


Numa das artérias centrais da cidade das Caldas da Rainha encontrei um dia um grafiiti onde se podia ler: “Antes das cidades já havia pessoas?”.
A pergunta, operando por uma espécie de redução ao absurdo, pode parecer desconcertante, porventura até insolente. Historicamente, as civilizações urbanas surgiram numa fase relativamente tardia da evolução das sociedades humanas.
A historia económica postula que o aparecimento de cidades implica não apenas a formação de um excedente demográfico, mas sobretudo a disponibilização de um excedente de produção agrícola, sem a qual não poderia ocorrer uma deslocação de força de trabalho dessa área para a do comércio, da manufactura, da defesa e da organização. A cidade é hierarquização territorial, institucionalização das relações sociais, organização das funções de cariz público, ou seja, atribuição de deveres em função de necessidades.
É na cidade, escreveu com optimismo, um muito citado historiador da origem das cidades, que se respira o ar da liberdade. A cidade é uma instituição de instituições, regulada por normas gerais e abstractas, a Lei. Mas a lei não garante por si só a justiça, a equidade, a  autonomia dos cidadãos, a democraticidade dos processos de decisão. José Luís Villacañas recorda um conto de Franz Kafka, que narra a historia de um camponês que permanece uma vida inteira junto da porta que dá acesso à Lei. O camponês sente-se atraído pela luz que dela jorra. A porta está aberta, mas defendida por um guarda que o impede de a franquear. A tudo o guarda resiste, aos pedidos e subornos. Ao fim de muitos anos, sentindo a morte aproximar-se, o camponês faz a pergunta que havia calado: “Se toda a gente procura seguir a Lei, como se explica que nestes anos só eu tenha procurado entrar?”, a que o guarda respondeu: “Ninguém podia ter obtido autorização para entrar, porque esta porta estava destinada apenas a ti. E agora vou fechá-la”.
Se à cidade está associada a diferenciação e a regulação institucional, também está associada o autoritarismo. A cidade com o sistema de governo mais aperfeiçoado da antiguidade, Atenas, foi também aquela cujas instituições deliberaram a condenação à morte de um filosofo interpelante, por vezes irreverente, Sócrates.
É desta tensão – entre a cidade como factor de inclusão e a cidade como cenário de exclusão – que falarei nesta crónica mensal. A cidade é património comum e é criação, ao mesmo tempo que é fragmentação e fronteira. Reflectindo sobre a experiencia pessoal e reflexão actual, proponho-me trazer regularmente ao Região de Leiria, propostas de leitura e interpretação do lugar do urbano e do papel das cidades no mundo contemporâneo.



[Texto publicado no jornal Região de Leiria, edição de 15 de Fevereiro de 2013]

domingo, 10 de março de 2013

"Inscrição"

Inscrição

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar

Sophia de Mello Breyner Andresen