quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Vou partir de avião. Ana Luisa Amaral

Testamento

Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos

Se eu morrer
quero que a minha filha se esqueça de mim
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita

Dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas e somar
e a descascar batatas

Preparem a minha filha
para a vida
se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras

Ana Luisa Amaral, Inversos. Poesia 1990-2010. Lisboa, Dom Quixote, 2010, p. 51.



1 comentário:

  1. SINGELINHA

    [...]
    Ali singela me achei
    porquanto pura me achavam
    que modos de flor ganhei
    no nome que me botaram.

    - Minha mãe, tredo vapor
    que à má-fila aqui passou
    pediu-me peitinho em flor.
    Minha Mãe, dou ou não dou?

    - Filha, já no coletinho
    rosas de cachinho estreitas.
    Ai que te leva o destino!
    Para isso filhas são feitas.

    - Minha Mãe, treda escotilha
    que à má-fé aqui passou
    puxou-me pela sapatilha.
    Minha Mãe, vou ou não vou?

    - Filha, já desse corpete
    te vão rosas aos quadris.
    Ai que te leva o paquete!
    Para isso, filha, te fiz.
    [...]
    Natália Correia, POESIA COMPLETA, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 1999, pp. 440-441.

    ResponderEliminar