quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Para compreender o mundo é preciso mudarmos de posição. Albert Camus


Já não existem desertos, já não existem ilhas. Mas sentimos a sua falta. Para compreender o mundo, é preciso mudarmos de posição, para melhor servir os homens colocá-los por momentos à distancia. Mas onde encontrar a solidão necessária à força, a longa respiração na qual se revê o espírito e se mede a coragem? Restam as grandes cidades. Há, porém, condições a garantir.
As cidades que a Europa nos oferece estão demasiado preenchidas com rumores do passado. Um ouvido aplicado poderá perceber o bater de asas, uma palpitação de almas. Sentimos nisso a vertigem dos séculos, das revoluções, da glória. Lembramo-nos de que o Ocidente se forjou entre clamores. Não dispomos de silêncio bastante.
Paris é muitas vezes um deserto para o coração, mas a certas horas, do alto do [cemitério] do Père-Lachaise, sopra um vento de revolução que enche repentinamente esse deserto de bandeiras e grandezas vencidas. O mesmo acontece com algumas cidades espanholas, Florença ou Praga. Salzburgo seria agradável sem Mozart. Mas, de longe em longe, corre pelo Salzach o grande grito de Don Juan mergulhando nos infernos. Viena parece mais silenciosa, é uma jovem entre as cidades. As suas pedras não têm mais de três séculos e essa juventude ignora a melancolia. Mas Viena situa-se numa encruzilhada da história. Em seu redor ressoam choques de impérios. Em certas tardes, em que o céu se cobre de sangue, os cavalos de pedra dos monumentos do Ring parecem voar. Neste instante fugitivo, em que tudo fala de poder e de história, podemos ouvir distintamente, sob a marcha dos esquadrões polacos, a queda retumbante do reino otomano. O que já não produz suficiente silencio.

Albert Camus, L'Été. Paris, Gallimard, 1954 [Le Minotaure ou la Halte d'Oran, 1939]

1 comentário:

  1. Gosto de textos como este que atribuem personalidades às cidades, de acordo com as vicissitudes que viveram e as memórias de que são portadoras. A questão colocada em termos auditivos torna-se particularmente interessante e profícua.
    E quem mais saberia escutar e interpretar assim, como Camus, estas vozes deixadas pelo Tempo e pela História?
    Daí a importância de complementar a experiência presencial das cidades, com a que das mesmas se pode ter através da leitura. Como nos ocorreria "isto" e o mais que "isto" suscita em cada um de nós sem o ter lido?
    Como se prova neste blogue, a "literatura de viagens" é infindável...

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