sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Como aquela igreja era francesa. Marcel Proust

Como o passeio do lado de Méséglise era o menos comprido dos dois que fazíamos à volta de Combray, e por causa disso o reservávamos para quando o tempo estava inseguro, o clima do lado de Méséglise era bastante pluvioso e nunca perdíamos de vista a orla das matas de Roussainville, em cuja espessura nos poderíamos abrigar.
Muitas vezes o sol ocultava-se por detrás de uma nuvem, que deformava a sua forma oval e cujos bordos amarelava. O brilho, mas não a claridade, era roubado ao campo, onde toda a vida parecia suspensa, enquanto a aldeiazinha de Roussainville esculpia no céu o relevo das suas arestas brancas com uma precisão e um acabamento esmagadores. Um pouco de vento fazia um corvo levantar voo para voltar a poisar ao longe e, contra o céu esbranquiçado, a distância das matas parecia mais azul, como que pintada naqueles camafeus que ornamentam os vãos das antigas mansões.
Mas de outras vezes começava a cair a chuva com que nos tinha ameaçado o frade capuchinho que o oculista tinha na montra; as gotas de água, como aves migratórias que levantam voo ao mesmo tempo, desciam do céu em filas apertadas. Não se separam, não vão à aventura durante a rápida travessia, antes, mantendo cada uma o seu lugar, chama a si a que a segue, e o céu fica mais escuro que à partida das andorinhas. Refugiávamo-nos na mata. Quando a viagem das gotas parecia ter terminado, chegavam ainda algumas, mais fracas, mais lentas. Mas nós tornávamos a sair do nosso abrigo, porque as gotas comprazem-se na folhagem, e já a terra estava quase seca quando várias delas se demoravam a brincar nas nervuras de uma folha e, suspensas na ponta, descansadas, brilhando aos sol, deixavam-se de repente deslizar de toda a altura do ramo e caíam-nos em cima do nariz.
Íamos também muitas vezes abrigar-nos, misturados com os santos e os patriarcas de pedra, sob o pórtico de Saint-André-des-Champs. Como aquela igreja era francesa! Por cima da porta, estavam representados os santos, os reis-cavaleiros com uma flor-de-lis na mão, cenas de bodas e de funerais, exactamente como o estariam na alma de Françoise. O escultor narrara também certas historietas relativas a Aristóteles e a Virgílio, do mesmo modo que a Françoise na cozinha falava facilmente de São Luís como se o tivesse conhecido pessoalmente, e em geral para envergonhar os meus avós, menos "justos", pela comparação. Sentia-se que as noções que o artista medieval e a camponesa medieval (sobrevivente no século XIX) tinham da história antiga ou cristã, e que se distinguiam por tanta inexactidão como bonomia, as recebiam, não dos livros, mas de uma tradição ao mesmo tempo antiga e directa, ininterrupta, oral, deformada, desfigurada e viva.
[...]
Já não pegada à pedra como aqueles anjinhos, mas destacada do pórtico, de estatura mais que humana, de pé num pedestal como que num banquinho que lhe evitasse poisar os pés no chão húmido, havia uma santa que tinha as faces cheias, o seio firme inchando o seu panejamento como um cacho de uvas maduras num saco de crina, a testa estreita, o nariz curto e resoluto, olhos fundos, o ar saudável, insensível e corajoso das camponesas da região. Esta semelhança, que insinuava na estátua uma doçura que eu não esperava ali, era com frequência certificada por uma qualquer rapariga do campo, vinda como nós abrigar-se, e cuja presença, semelhante à daquelas folhagens parietais que cresceram ao lado das folhagens esculpidas, parecia destinada a permitir, por uma confrontação com a natureza, ajuizar da verdade da obra de arte. Diante de nós, na distância, terra prometida ou maldita, Roussainville, em cujos muros nunca penetrei, Roussainville ora continuava, depois de a chuva ter cessado já para nós, a ser castigada como uma aldeia da Bíblia por todas as lanças do temporal que flagelavam obliquamente as moradas dos seus habitantes, ora estava já perdoada por Deus Pai, que para ela fazia descer, desigualmente longas, como os raios de um ostensório de altar, as hastes de ouro desfiadas do seu sol reaparecido.
 
Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, I, Do lado de Swann, trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Relógio d'Água, 2003, pp. 160 a 162.

1 comentário:

  1. BELO E ANTIGO

    Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras cousas
    E cantavam o amor literariamente.
    (Depois - eu nunca li Virgílio.
    Para que o havia eu de ler?)


    Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,
    E a Natureza é bela e antiga.

    Alberto Caeiro, O GUARDADOR DE REBANHOS, XII.

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