quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Uma viagem sentimental sobre uma mula tordilha. Ortega y Gasset

Por terras de Sigüenza e Berlanga do Douro, nos dias de Agosto lancinados pelo sol, fiz eu - Rubin de Cendaya, [pseudónimo de Ortega y Gasset] místico espanhol - uma viagem sentimental sobre uma mula tordilha de altas orelhas inquietas. São as terras que o Cid cavalgou. São, além disso, as terras onde surgiu o primeiro poeta castelhano, o autor do poema chamado Myo Cid.
Não se julgue por isto que sou de temperamento conservador e tradicionalista. Sou um homem que ama verdadeiramente o passado. Os tradicionalistas, pelo contrário, não o amam: querem que não seja passado, mas sim presente. Amar o passado é alegrar-se de que efectivamente tenha passado e de umas coisas, perdendo essa rudeza com a qual ao estarem presentes arranham os nossos olhos, os nossos ouvidos e as nossas mãos, ascendam à vida mais pura e essencial que têm na reminiscência.
O valor que damos a muitas das realidades presentes não é merecido por estas em si mesmas; se nos ocupamos delas é porque existem, porque estão aí, diante de nós, ofendendo-nos ou servindo-nos. A sua existência, não elas, tem valor. Pelo contrário, daquilo que foi interessa-nos a sua qualidade íntima e própria. De modo que as coisas, ao penetrar no âmbito do pretérito, ficam despojadas de toda a aderência utilitária, de toda a hierarquia fundada nos serviços que enquanto existentes nos prestaram, e assim, absolutamente despidas, é quando começam a viver do seu vigor essencial.
Por isso, é conveniente lançar, de vez em quando, um longo olhar em direcção à profunda alameda do passado: nela aprendemos os verdadeiros valores - não no mercado do dia.

Ortega y Gasset, Notas de Andar e Ver (Viagens, Gentes e Países). Lisboa, Fim de Século, 2007, p. 29-30.

1 comentário:

  1. JUNTO DO RIO

    Cá, nesta Babilónia, donde mana
    Matéria a quanto mal o mundo cria;
    Cá, donde o puro Amor não tem valia,
    Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
    Cá, donde o mal se afina, o bem se dana,
    E pode mais que a honra a tirania;
    Cá, donde a errada e cega Monarquia
    Cuida que um nome vão a Deus engana;
    Cá, neste labirinto onde a nobreza,
    O valor e o saber pedindo vão
    Às portas da cobiça e da vileza;
    Cá neste escuro caos de confusão,
    Cumprindo o curso estou da natureza.
    Vê se me esquecerei de ti, Sião!

    Camões, "Sonetos" IN LÍRICA DE CAMÕES, ed. crítica de José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1932, p. 168.

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