domingo, 13 de outubro de 2013

Viajar com Sophia (3). Miguel Sousa Tavares


E veio. Na primeira noite, instalámo-nos no Forte Aguada, em frente de Pangim, a capital do Estado de Goa. Com o mar aos pés e uma noite tropical, com a companhia de outros portugueses, como o António Alçada Baptista, foi um jantar maravilhoso, que se arrastou até altas horas da noite. Acordei na manhã seguinte a pensar que, ou ficava ali a tomar conta dela e a ver as palmeiras que "como um trigo de Império, ondulam sem se poder ver", ou ia fazer a minha reportagem. Assim, com o coração dividido e a consciência trespassada, fui-me despedir dela, explicando-lhe que tinha de ir para Pangim, do outro lado do canal e onde estavam as minhas "fontes", os meus "contactos", o material da minha reportagem. Respondeu-me que fosse sem problemas, que ficava muito bem, ali, onde os Albuquerques e os Mascarenhas tinham construído aquele forte virado para o mar que um dia os levaria de volta a casa. Dois dias depois, não tendo conseguido falar com ela por telefone, fiquei apreensivo e resolvi ir até ao outro lado do canal, para ver se ela estava bem. De Pangim para lá e vice-versa, atravessava-se numa espécie de cacilheiro, carregado de famílias, porcos, galinhas, sacas e trouxas de toda a espécie: não mais de quarenta minutos. A meio da travessia, quando nos cruzámos com outro barco igual que vinha de lá, peguei na máquina para fotografar aquela cena cheia de cor de dezenas de indianos encavalitados em tudo o que era sítio, no outro barco. Havia uma ligeira neblina no canal, que tornava ainda mais exuberante o espectáculo de cores do barco com que nos cruzávamos. E, de repente, correndo a mão ao longo do barco, à procura da melhor fotografia, vejo-a a ela - sozinha, a meia nave, entre os outros passageiros. Estava a uns vinte metros dela e gritei "Mãe!". Ela virou-se, reconheceu-me e sorriu, radiante. Nesse exacto instante, eu disparei e guardei-a para sempre, assim - feliz, deslumbrada, perdida na Índia. Não como se viajasse: como se flutuasse.

Miguel Sousa Tavares, "Roma, Piazza Navona" in Colóquio Letras, número 176, Janeiro/Abril 2011, pp. 127-8.

2 comentários:

  1. NAVEGAÇÕES I

    Deslizado silêncio sob alísios
    - As velas todas brandamente inchadas -
    Brilho de escamas sob os grandes mares
    E a bombordo nas costas avistadas
    Sob o clamor de extáticos luares
    Um imóvel silêncio de palmares
    1982

    Sophia de Mello Breyner, MAR, Lisboa, Caminho, 2001, p. 61

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  2. Pronto. Converti-me: as fotografias são indispensáveis à viagem!

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