domingo, 6 de outubro de 2013

Mais uma vez foi preciso partir. René Char

Porquê este caminho em vez daquele? Onde conduz, para nos solicitar tão fortemente? Que árvores e que amigos estão vivos por detrás do horizonte destas pedras, no longínquo milagre do calor? Viemos até aqui, porque ali onde estávamos já não era possível. Torturavam-nos e iam escravizar-nos. O mundo, hoje em dia, é hostil aos Transparentes. Mais uma vez foi preciso partir... E este caminho, que parecia um esqueleto comprido, conduziu-nos a um país que só tinha o seu fôlego para escalar o futuro. Como mostrar, sem atraiçoá-lo, as coisas simples desenhadas entre o crepúsculo e o céu? Por virtude da vida obstinada, na fivela do Tempo artista, entre a morte e a beleza.

René Char, Este Fanático das Nuvens (Antologia Para uma Leitura). Selecção e organização de Marie-Claude Char e Y. K. Centeno. Lisboa, Cotovia, 1995

1 comentário:

  1. Dá vontade de não pensar mais nada e ouvir em nós (apenas) uma voz que exclama: maravilhoso! E maravilharmo-nos por isso.Tal o mistério que emana deste texto ainda antes de tentar compreendê-lo "sem atraiçoá-lo" (também).

    E depois, pensando afinal um pouco, pensar sobre esse mapa dos lugares de que se faz a vida, reconhecer a perplexidade contida na expressão "fivela do Tempo artista" e acabar por lembrar um outro texto, de Maria Gabriela Llansol que diz:

    "Mas eu nunca saí daqui, no sentido de que nunca abandonei o meu corpo. A minha forma de rebeldia foi tão-só a recusa de o viver mutilado. E em tantos séculos, ele lançou raízes ou deixou pegadas em lugares de que já nem guardávamos memória. (...) Ir buscar plenitude, é garantir a respiração harmónica e metódica do meu corpo feito para perdurar."
    Llansol, Maria Gabriela (1985) um falcão no punho. Lisboa, Edições Rolim (p.145)

    Uma afinidade apenas pressentida.

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