quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Evocação de Raul Brandão. Com Aquilino Ribeiro (II)

ASCENDENTES CARNAIS E PSÌQUICOS

Raul Brandão nasceu à beira-mar, Foz do Douro, naquela parte da costa onde as vagas dificilmente consentem molhe. É possível que o seu ar contemplativo ou ausente, que me lembrava o dum cormoran solitário empoleirado em cima dum recife, lhe venha daí, do sentimento nato da imensidade.
Ali viveu os tenros anos, compenetrando-se, como dum fluido, do infinito que o mar exala das suas vozes, das suas cóleras, de suas perspectivas ilimitadas e até da imprevisível gama das suas tintas. Suponho que o meio seja agente primordial na formação dum temperamento. Os cobaltos cheios de nuances que rebrilham à tona das águas marinhas, as anilinas voláteis que escorrem do céu, verteu-os para os Pescadores em tintas tão vivas que, lendo-o, nos sentimos nas falésias diante da espacidão oceânica. O panorama humano da borda de água não devia impressionar menos a sua alma infantil. Os dramas do embarcadiço, desde o remador da companha ao grumete do navio a vapor, do pescador ao emigrante, conheceu-os ali nas suas modalidades. De forma que o seu impressionismo atlântico bebeu-o com o leite, pode dizer-se. E é por isso mesmo que ninguém lhe preleva quanto a debuxar um pôr do sol com dois toques de pena, na descrição das fainas de bordo ou a fazer a incisão rápida duma máscara de marítimo.
Rapazinho, levaram-no os Pais para o Porto onde, aluno do colégio de S. Carlos, fez o liceu, agregado ao tempo de disciplinas livres e não o encadeado e cíclico albardamento de cadeiras que fazem dos portugueses de hoje burros encartados. Frequentava mais tarde o Curso Superior de Letras quando foi publicada uma reforma do exército que criava o serviço militar obrigatório.
Li não sei onde que o pior flagelo trazido na envolta das guerras napoleónicas não foi o assolamento de meia Europa, o holocausto de milhões de vidas na pira da glória, foi o chamado imposto de sangue. Instituição tão peregrina tivemos também que introduzi-la sem o quê não seríamos gente. Ficámos mavórticos como o restante mundo, quando parecia à primeira vista que o facto da nossa debilidade, inerente à nossa pequenez, nos devia preservar da custosa nobilitação.
Temos Raul Brandão cadete para comprazer com os pais, mormente com a mãe, pela qual manifestou sempre uma ternura tão sentida como precatada. Ela gostava de ver o seu menino fardado, taful, cintadinho em correias de ante, pisgado pelas carochinhas das janelas, e compreende-se que o uniforme pelo facto de se não confundir com o desmanchado e comum trajo burguês crie distinção apreciável. A carreira militar não era porém a que mais quadrava ao temperamento de Raul Brandão. A arregimentação, só por si, constituía uma violência ao seu carácter altaneiro e independente. Muito menos a rigidez disciplinar convinha à sua índole melindrosa e aos fumos de liberdade que cedo lhe subiram à cabeça. Um dia, depois de ter feito manobrar uma companhia na parada, mandou-a destroçar com estas vozes sacrílegas de paisano:
- Façam favor de entrar em quartéis.
Reformou-se no posto de major, a patente mais novelesca da carreira, donde se pode partir para mil rumos, inclusive a aventura das belas-artes.
Raul Brandão refugiou-se nas letras, se é que não estava nelas desde o dia em que contava para os outros rapazes as lindas histórias dos caramujinhos. Compôs livros escolares, praticou o jornalismo, até que se acolheu à sua quinta da Nespereira em companhia dos autores predilectos, das árvores, que tratava com extremos reservados aos viventes das suas próximas relações, nunca se esquecendo todas as manhãs de lhes ir dar os bons-dias, inquirir das suas preciosas saúdes, ministrando-lhes, se havia mister, os cuidados e desvelos que se devem a enfermos e a amigos. Na Nespereira realizou, secundado por sua mulher, D. Angelina, a mais terna das esposas e a mais compreensiva das colaboradoras, a obra capital.
Seria delicado averiguar até que ponto vai nesta espécie de sonata executada a quatro mãos o papel da senhora. O seu nome subscreve, a par do nome glorioso do marido, o Portugal Pequenino. Nunca nos permitimos trocar com eles qualquer impressão no que respeita a este particular. Mas, pois que há obra a duo, ocorre-nos que na comandita dos irmãos Goncourt, Edmundo, o sobrevivente, delimitou quase no fim da vida com uma rectidão que se sente passar por cima de todos os sentimentos, ditada nada mais que pelo culto da verdade, o lote de cada um.
Foi na Nespereira, entre vigiar georgicamente a vinha, presidindo às operações essenciais, e a espreitar com olho enamorado, o olho dum rapaz perante a mulher querida, como as árvores mudavam de toilette, que escreveu e sonhou. Raul Brandão era um sonhador e a obra que deixou no céu, enquanto seguia com os olhos o velejar duma nuvem, o voo de uma andorinha ou as manobras bélicas dum milhafre pairando sobre as capoeiras, seria incomparavelmente maior e mais bela do que aquela que corre impressa nos seus livros.
Era religioso se por este vínculo se entende possuir-se alma amante e solidária com os seres e coisas do mundo. Nunca a palavra panteísno encontrou melhor aplicação do que neste homem de horizontes dilatados. O carinho que votava à natureza era imbuído de respeito e devoção filial. Tenho presente a descrição da árvore que floriu antes do tempo, enganada por uma Prrimavera dolosamente prematura, e noto que a sua emoção não seria maior se se tratasse da tragédia duma rapariga seduzida por um qualquer Lovelace. Nada lhe causava maior preocupação e portanto pena do que os seres que se não sabem defender. As árvores erguem-se em seus livros clamorosas de humanidade, digamos, tanto como a Candidinha e o Gebo.
A Nespereira foi o seu campo de Josafá. Da terra, ensopada pelas chuvas batentes dos invernos sem fim, levantavam-se os mortos, cansados do sono, e vinham ter com ele. Procuravam o lume sempre aceso do seu coração como se quisessem aquentar os membros enregelados. E as noites coalhavam-se-lhe de frus-frus sobrenaturais, suspiros, rezas, evocações, como num sabbat em surdina. Era esse universo sub-inferior, plantado para lá das fronteiras do conhecimento, que ele animava duma vida ruidosa e densa.A Casa do Alto era como os castelos na literatura de maravilha, governados por um génio poderoso, senhor duma varinha de condão, aos gestos da qual giravam e rodopiavam duendes, lémures e mais fauna das profundidades fantásticas. De lá expedia as suas mensagens para o além, a outra margem invisível da vida, desesperado e medroso. Ali meditou nos Novíssimos do homem, como lhe diria o confessor, se o tivesse.
Raul Brandão era homem lido e viajado. Na sua biblioteca encontrava-se de tudo, o bom e o mau, o bom porque era bom, o mau porque vinha na condição de joio de mistura com o grão, e ainda porque há mérito em conhecer os vícios da inteligência e as inferioridades do artesanato. Em conformidade, lia tudo, em especial a literatura russa, pela qual sentia manifesta simpatia, mais queda do temperamento que atitude do espírito. De certo Dostoiewski, Gorki, um tanto Tolstoi não deixaram de influir em seus etos, vincando-lhe o carácter. Aqui e além, numa ou noutra página, transparece a sugestão involuntária destes atlantes das letras.
   Compreende-se. Se alguma vez houve em arte auscultação séria do homem, praticaram-na os russos. A latinidade esgotou-se no jogo das formas e no ludíbrio dos conceitos. De todo esse movimento rectilíneo de superfície, desses caminhos luminosos da objectividade nada restava por devassar. O mundo aparente era chão varrido. Ficaram-lhe devolutas a vida de catacumba do eu e a noite, imenso campo de acção de almas e corpos. Foi para esse hemisfério que, na esteira dos eslavos, enveredou Brandão.

Aquilino Ribeiro, Camões, Camilo, Eça e Alguns Mais, Lisboa, Livraria Bertrand, 3ª ed., s.d., pp. 253-255.

1 comentário:

  1. IDA AO MAR

    " Se fecho os olhos sinto logo esta mão áspera e enorme que me leva na noite húmida e cerrada. Não vejo o mar, mas envolve-me e penetra-me o hálito salgado e ouço-lhe ao longe o clamor. No primeiro plano, ecoa o o desabar ininterrupto, depois, lá ao fundo distingo outra voz mais rouca e para além um lamento que não cessa, donde irrompe de quando em quando um grito. De noite apaga-se o mundo e só esta voz enche o mundo..."

    Raul Brandão, OS PESCADORES, Lisboa, Estúdios Cor, 1973, p. 23.

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