segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Em todo o caso era impressionante ver a Cidade Monstro adormecida... José Rodrigues Miguéis

Sabia já, por carta amiga, que eles estavam a chegar por via marítima, em grupo, para erguer e montar o pavilhão português da Feira mundial, a ser inaugurada em breve. Ausente havia cinco anos, e num estado de nervos que lhe exacerbava todos os afectos, a notícia trazia-o alvoroçado e impaciente: Se eles queriam vê-lo? E como o acolheriam se...? Por isso, naquela tarde, o telefonema, sem o surpreender, foi uma surpresa: pela coragem do alto funcionário que ousava infringir a regra do ostracismo. "Já cá estão! – disse ele. – Venha vê-los esta noite ao Martinique!" (hotel algo suspeito, mas tal fora a decisão oficial...). Correu a procurá-los logo depois de jantar. O encontro foi eufórico. Receberam-no rindo, de braços abertos, como amigos velhos. O Bernardo [Marques] e a Ofélia, o Fred [Kradolfer] e a Astrid, o Zé Rocha e a Selam enfim unidos, o Carlos [Botelho] (sem a Dona Brites, que pena!), e além deles Anahory, celibatário. Estavam os mesmos, pareciam felizes, e o Ontem fez-se Hoje de repente. Só faltava o Arquitecto, que seguia à risca as instruções do Chefe. Este, ainda a bordo, reunira-os e falara assim: "Eu sei que vocês são todos amigos do Expatriado, e hão-de querer encontrar-se com ele. Mas, pelo amor de Deus, façam-no discretamente, onde isso não dê nas vistas! Eu admiro-o muito, mas o sorriso dele, o nariz bicudo, bastam para o tornar subversivo!" E a primeira coisa que eles faziam, queridos!, era chamá-lo. Ainda mais enternecido ficou ao sabê-lo.
Tomaram uns drinks, ele bebeu com sofreguidão as impressões da Pátria, depois subiram aos quartos, no décimo quinto andar. O Benardo, ao ver da varanda corrida as ruas desertas àquela hora, empalideceu: "Que silêncio!" Fosse ele em pleno dia... Ou em Paris! Em todo o caso era impressionante ver a Cidade Monstro adormecida... Conversaram até tarde. A ele, solitário num mundo de acção e luta onde era um zero, traziam-lhe uma rajada de passado, afinal recente, em que ele julgara ser alguém; um calor de amizade, de camaradagem, e a ilusão dum convívio que afinal fora sempre, apenas, ocasional. Ele, acanhado ou estranho, pouco frequentava aquela roda turbulenta em que amarguras e frustrações se exprimiam por meio da agitação clónica, da loucura mansa: gritos, pulos, cantoria descompassada e desafinada, poses parisienses de "quadros-vivos"... ( O Poeta estava sempre ausente, e a esposa pouco aparecia.) Mas o tempo e a distancia, agora subitamente telescopados, aproximavam-nos, transfiguravam tudo, tornavam caloroso o que fora apenas tempo íntimo.
[ ...]
Eles andavam muito ocupados com os trabalhos do pavilhão*, mas encontravam-se sempre que podiam. Conversavam e riam muito, interminavelmente. Correram a Cidade, as alfurjas e os bairros de luxo, os parques e os museus, as pontes e os arranha-céus; deram a volta a Manhattan e foram até ao extremo de Long Island Sound no vapor das excursões, tiraram fotos no Jardim Zoológico. New York tinha e tem de tudo para todos os gostos e emoções: atrai e repele, horroriza e atemoriza. Lessem eles o que o Lorca surrealista escreveu em Poeta en Nueva York!

José Rodrigues Miguéis, "Reencontro em Babilónia" (Diário Popular, 25 de Outubro de 1973. In A Amargura dos Contrastes, Lisboa, O Independente, 2004, p. 11-13.


*O texto refere-se com toda a probabilidade à presença portuguesa na Feira Mundial de Nova Iorque, inaugurada a 8 de Maio de 1939, tendo o pavilhão português sido desenhado pelo Arq. Jorge Segurado.

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