terça-feira, 20 de agosto de 2013

Provavelmente até no Porto. Manuel António Pina

Uma cidade como esta

Para que conste, este cronista não nasceu em sítio nenhum

Clamam alguns ter nascido em determinado sítio, e daí reivindicam incertos orgulhos e pergaminhos. No Porto, por exemplo. Ou em Uagadugu. Ou em Tegucigalpa. Eu não vejo por que alguém possa pretender aproveitar do simples facto de ter nascido, tanto mais tratando-se, o nascimento, de um acontecimento para o qual o nascido apenas terá concorrido com uns vagos movimentos peristálticos, visto que o trabalho duro foi todo presumivelmente da mãe... E tanto mais que, também presumivelmente, ninguém lhe terá perguntado antes de nascer acerca do lugar onde o sucesso haveria, segundo a sua vontade, de dar-se. Se foi algo que não desejou nem quis e para o qual nada fez, porque haverá alguém de reivindicar o que quer que seja por ter sido desembolsado num determinado lugar? Mais se justificará então que o faça quem, em vez de simplesmente nascer num lugar, nele se tenha a si mesmo nascido, por decisão da vontade ou por indecisão do coração.
É público e notório que nascer é uma ocorrência que acontece a muita gente e nas mais dispersas latitudes.Provavelmente até no Porto. A misteriosa circunstância de tal facto, na generalidade dos casos, ocorrer no tempo e no lugar, leva a que qualquer nascido, até o mais desprovido, tenha por atributos ao menos um certo sítio e uma certa data, justamente por isso ditos "de nascimento". E se há quem possa reivindicar privilégios por ter nascido num determinado sítio (uma cidade, um país, um continente) também certamente haverá quem o possa fazer por, e a título de exemplo, ter nascido em 17 de Agosto de 1921 e mais nas particularidades horárias que tiverem sido as do caso.
Para que conste, este cronista não nasceu em sítio nenhum. Alguém, no caso a sua distante mãe, o nasceu onde ela calhou de estar, ou onde conseguiu chegar quando se lhe romperam vivamente as águas. Depois disso, ele próprio a si mesmo se foi nascendo em diversos sítios, uns exteriores outros interiores. Um deles, simultaneamente exterior e interior, foi o Porto. Aqui se nasceu ele, adolescente primeiro, adulto depois, ao longo de muitos e desencontrados anos, felizes uns, impenitentes outros, entre memórias, medos, exaltações, rostos, desejos, e tudo aquilo de que é cegamente feita e desfeita essa respirada coisa que é a vida. Tudo o que de si sabe, e também algumas coisas que não sabe, está preso a estas pedras, a estas ruas, a estas fachadas. E um dia, depois de morto, ele próprio há-de ser pedra, volúvel pedra, desta pedra, e há-de continuar a andar por aí nascendo-se - oxigénio, hidrogénio, carbono, azoto - por esta gente, por estes rumores de folhas, por estes frutos. Então será, não do Porto, mas o próprio Porto, ou ao menos uma parte, material e extrema, dele; ou uma cidade como esta.
Outros escreverão cânticos de amor, outros louvações ou imprecações. A ele basta-lhe escrever-se a si mesmo, inscrever-se. Basta-lhe lembrar. Basta-lhe acordar cada manhã sabendo que está em casa, conhecendo as paredes, os móveis, os livros. Ouvir os seus mortos, tocar os seus vivos.Quem o culpará, pois, se ficar em casa ou se, tendo partido, quiser regressar? E quem estranhará se, chamando-o pelo seu nome, ele se voltar e o seu rosto for como um rio passando?

Manuel António Pina
[Crónica publicada na revista Visão em 22 março de 2001]

2 comentários:

  1. Agrada-me o tom deste texto.
    A propósito do nascimento, as considerações que Manuel António Pina faz, tão verdadeiras e invulgares em sua aparente simplicadade. Pertinentes. O autor ter-se feito nascer no Porto, diversas vezes, e saber de antemão que um dia, depois de morto, há de vir a ser o Porto. Que inesperada familiaridade com a morte e com a vida...

    Aliás, haverá melhor definição de vida?
    "essa respirada coisa."
    Vou guardá-la na memória.

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  2. "Eu gosto do Porto. Não do Porto erudito do Sampaio Bruno, ou do burguês e literário do Ramalho. Gosto de um Porto cá muito meu, de que vou dizer já, e amo-o de um amor platónico, avivado de ano a ano à passagem para a minha terra natal, quando o menino Jesus acena lá das urgueiras.
    Entro então nele a tiritar de frio, atravesso-o molhado de nevoeiro, tomo um quarto, e deito-me no aconchego dessa velha e particular paixão que nos une. No dia seguinte, pela manhã, levanto-me, compro um jornal, embarco, e a minha visita anual e discreta acabou.
    De vez em quando perco a cabeça, estrago os horários, e vou ver o Pousão, a mão do Conde Ferreira, a igreja de S. Francisco, ou meto-me num eléctrico e dou a volta ao mundo, a descer à Foz pela Marginal e a subir pela Boa-Vista."
    Miguel Torga, "O Porto" in PORTUGAL, Coimbra, 1950, p.43.

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