quinta-feira, 15 de agosto de 2013

De Marc Augé a Maria Gabriela Llansol. Eduardo Prado Coelho

Qual a tese principal do livro [Non Lieux: Introduction à une Anthropologie de la Surmodernité]? Marc Augé vai começar por definir os lugares antropológicos - que são aqueles que fazem sentido para quem lá vive (assistimos a uma espécie de privatização de "lugares de memória") e por isso mesmo são princípios de inteligibilidade para o antropólogo que os observa. Como defini-los? Por três características: são lugares que sustentam uma identidade, que permitem desenvolver estruturas de relação (isto é, o confronto com o Outro) e que têm uma estabilidade histórica regulada por festas, comemorações, rituais, monumentos. Em torno de lugares antropológicos pode-se instituir uma rede de referências, através de itinerários, encruzilhadas, centros, que são formas de interferência entre a temática individual e a temática colectiva.
E assim chegamos ao ponto fundamental: "Se um lugar se pode definir como gerador de identidade, relacional e histórico, um espaço que se não possa definir como gerador de identidade, nem como relacional, nem como histórico, será então um não-lugar. A hipótese defendida é que a sobre-modernidade é produtora de "não-lugares". Estamos assim num mundo destinado " à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efémero.
Aliás o espaço do viajante é o arquétipo do não-lugar. E se os lugares antropológicos criam social-orgânico, os não-lugares desenvolvem um espécie de contratualidade solitária.
Pergunta: será que pela leitura de certos escritores mágicos (como a Maria Gabriela Llansol) seremos capazes de reinventar o suporte vivo de lugares como a casa, o jardim, o pinhal, o mar, o quarto?

Eduardo Prado Coelho, Tudo o Que Não Escrevi. Diário II (1992). Vol. 2. 2a edição. Lisboa, Asa, 2008, p. 22-23.

2 comentários:

  1. Numa qualquer manhã, em que deambulava pela margem do rio, exercício que muito me apraz, deparei-me, debaixo da ponte Europa, com três tendas erguidas junto a um dos pilares sobre uma enorme alcatifa verde, impecavelmente limpa. Em frente havia uma mesa e sobre esta, uma garrafa de água e um prato raso com um copo invertido. À beira do rio havia um gradeamento de madeira e arame, onde aberta, a secar, se via uma saia rodada de mulher.
    Ali havia amor, harmonia, paz, carinho, empenho. Adivinhava-se a postura de quem não desiste. O que via, se não fosse tão trágico, seria muito belo.
    Apeteceu-me dar mais uns passos, sentar-me num dos três bancos que rodeavam a mesa, verter um pouco de água no copo e ficar ali, naquela quietude, bebericando e olhando a outra margem. O horizonte não se alongava, mas em mim haveria muito a observar.
    Que Prado Coelho me perdoe a ousadia de o contestar, mas a questão não será se “seremos capazes”, não duvido que sejamos, mas sim se queremos, se estamos dispostos a “incomodarmo-nos” com isso, se ainda acreditamos no amor.

    ResponderEliminar
  2. Sem que em nada perca por isso, pelo contrário até acentua a acuidade própria, a pergunta assim formulada, mais do que colocar uma questão, afirma-a com maior ênfase.

    Viajar (assim) de Marc Augé para Maria Gabriela Llansol só seria possível a um grande leitor como o saudoso Eduardo Prado Coelho. Antes de mais, um escritor da leitura, à boa e profícua maneira ensaística, como se prova neste excerto.

    Curiosamente, propus-me escrever um texto sobre a leitura para uma publicação subordinada ao tema aglutinador "movimentos". Nesse contexto, já me tinha apercebido não ser possível pensar a leitura sem pensar a escrita e vice-versa, como Roland Barthes nos diz (implicitamente) no seu escrito "A Morte do Autor". Este post ganha particular significado para mim dada esta minha circunstância particular.

    Para terminar, um pedaço de Maria Gabriela Llansol:

    "Úrsula escreve na sua língua, enquanto esta lhe conceder uma escrita inconfundível como se lhe dissesse: - Sinto-me apertada nas línguas que me falam, fala-me mentalmente , no teu corpo e no teu íntimo; escreve-me para que eu não morra, nem tu, nem eles;
    creemos um sítio novo que eu sou já tão velha que vejo em meu redor todos os que, porque me cuidaram mortal, tão amorosamente me cuidaram: 'escreve.'"

    - Causa Amante, Lisboa, s.d., A Regra do Jogo(p. 103)

    ResponderEliminar