segunda-feira, 11 de março de 2013

“Paris é uma obra de arte”


A crónica de hoje bem podia intitular-se “As cidades americanas de Fernando Távora”. Do programa evocativo do professor e arquitecto Fernando Távora que Guimarães 2012 acolheu, constava uma exposição sobre a sua obra e a edição facsimilada do Diário de “Bordo”, o relato circunstanciado e vivo, com recurso à escrita e ao desenho, de uma visita de estudo efectuada em 1960. Iniciou-se a 13 de Fevereiro esta grande viagem, que percorreria diversas cidades dos Estados Unidos, a cidade do México, Tóquio, Banguecoque e Karashi, Beirute e Balbeque, Cairo e Atenas, regressando a Lisboa a 12 de Junho.
Távora tinha então 36 anos, leccionava na Escola Superior de Belas Artes do Porto, trabalhava para a Câmara Municipal e em projectos de atelier. Esta viagem como escreveu José António Bandeirinha, o comissário da exposição “Fernando Távora: a Modernidade Permanente” tornou-se “um verdadeiro périplo de encontros culturais e de reversos reencontros com a sua própria identidade matricial”. O Diário testemunha o confronto em que o arquitecto se acha envolvido, colocando sob a perspectiva crítica das suas origens portuguesas e europeias a forma de viver e de representar do Novo Mundo.
Leia-se, por exemplo, a descrição que faz de uma visita ao Empire State Building, que realizou a 6 de Março, advertindo que o faz “para ver a paisagem”
"A paisagem urbana é surpreendente. Os edifícios de 20 andares - o Chrysler Building, o Secretariado das Nações Unidas, o Rockfeller Center, o Wall Street -  tudo fica a nossos pés como um gato aninhado à lareira. Ao longe os aeródromos, a estátua da Liberdade, os rios, as pontes, as high e expressways, o Central Park e os suburbs. É difícil imaginar uma tão intensa humanização da paisagem e com que domínio sobre a natureza e com que esforço e dispêndio. Não me perguntem se acho bonito ou feio, estive duas horas lá em cima a pensar nisso e não cheguei a qualquer conclusão. Há apenas uma verdade evidente: é "quantitativamente" a maior empresa de todos os tempos. (Em determinada altura pensei que talvez fosse mais bonita a vista de Santa Luzia sobre Viana, a foz do rio e o mar. É seguramente mais tranquila, mas a vista de Nova Iorque a partir do Empire State Building é extraordinariamente "exciting". A comparação é estúpida mas eu estou tão enraizado nas minhas coisas que me atrevi a fazê-lo. Oh, as saudades da família e aqueles domingos em Santa Luzia! O que nós poderíamos fazer em Portugal!)
Este contraponto sentimental entre Santa Luzia e o Empire State é, no mínimo, surpreendente. Num dos arquitectos mais informados e cultos da segunda metade do século XX, a confissão quase irónica exprime o abismo das escalas e de tempo que separa a cidade europeia, e de forma vincada a portuguesa, da cidade americana.
De todas as cidades americanas onde se deteve, tanto da costa oeste como da costa leste, Nova Iorque foi apesar de tudo aquela com que criou mais empatia. Vindo de Filadélfia, entrou em Nova Iorque a 28 de Fevereiro. O que mais o impressiona de imediato é o movimento. Era um domingo ao principio da noite. "Não havia praticamente uma luz estável; tudo mexia como pirilampos em noite quente de verão (é uma noção impressionantemente nova, esta do movimento, de uma sociedade em permanente movimento - o movimento em todas as escalas de espaço e tempo)."
Não esconde a sua decepção com Washington, por onde iniciou o seu périplo americano: "Washington é uma bela cidade a duas dimensões, isto é na planta. A sua terceira dimensão, porém, é o caos. Dir-se-ia que tudo foi bombardeado e que a cidade foi reconstruída em estado de emergência, tendo-se conservado alguns prédios antigos. Vale a pena visitar esta cidade para compreender como Paris é, na realidade, uma obra de arte."
Uma semana mais tarde, a 21 de Fevereiro, a sua apreciação sobre a capital dos Estados Unidos parece ser menos áspera. "Devo dizer que Washington tem possibilidades de ser uma magnifica cidade porque o seu arranjo central tem muito da garra europeia (ítalo-francesa) de compor cidades. O problema foi o de construir uma cidade capital de uma federação campeã da democracia, segundo um esquema "l'état c'est moi". O que em Washington é realizado pelo Governo será discutível mas tem certa qualidade. O que é realizado pelo "americano" não corresponde ou não contribui para a valorização da cidade. O sentido "cívico" de cidade não o encontrei em Washington (embora me dissessem que os habitantes são muito "proud" da sua cidade."
Disse um dia Álvaro Siza que as cidades precisam de tempo, conceito em que certamente soma a sua própria experiencia ao seu longo e próximo contacto com Fernando Távora. É sem dúvida a falta de tempo, de experiencia acumulada, de construção, desconstrução e reconstrução, de múltiplas e sucessivas intervenções que corrigem e põem em dialogo o presente com o passado  que o repele na cidade americana. Como bem se depreende dos comentários que deixa a propósito de uma visita ao Metropolitan Museum: “"Estes museus americanos irritam-me um pouco por saber que esta gente tem aqui estas coisas magníficas apenas porque teve dinheiro para as comprar".[...] A beleza aqui está toda guardada e foi toda comprada aos outros. Os Estados Unidos tiveram a pouca sorte de surgirem no mundo numa altura desgraçada e são talvez os melhores representantes da nossa decadência, até porque não têm determinados pruridos e complexos que os outros povos possuem devido ao seu passado. Realizou-se aqui, talvez, o sonho grande da humanidade contemporânea: viver materialmente bem e (julga-se) todo o resto virá por acréscimo.
Não sei se me explico, nem sei se penso bem. Eu sou um triste rural europeu com ideias ultrapassadas."

Uma versão mais curta deste texto foi publicado no semanário Região de Leiria, a 7 de Março de 2013.

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